editorial de O Globo
Depois de idas e vindas — com destaque para a polêmica interferência do
ministro do Supremo Luiz Fux no processo legislativo da Câmara,
impedindo emendas ao projeto de origem popular —, a proposta de lei
sobre abuso de autoridade voltou a tramitar ontem no Senado, e ficou
ainda mais visível a marca que a iniciativa carrega de vingança
corporativista contra a Lava-Jato.
São indeléveis na manobra deste projeto as impressões digitais do autor,
senador Renan Calheiros (PMDB-AL), e do relator do projeto na Comissão
de Constituição e Justiça, Roberto Requião (PMDB-PR). O primeiro, réu no
Supremo em um processo em que é acusado de peculato e também ilustre
integrante da lista de Janot, ou seja, potencial denunciado em outras
ações; enquanto o segundo perfila na tropa de choque do lulopetismo. E
os dois, conhecidos inimigos de procuradores e juízes.
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, representante do
Ministério Público Federal, fez bem em levar formalmente à Câmara e ao
Senado propostas de mudanças no projeto, a fim de que não seja
criminalizado o ato de julgar de juízes e de investigar e denunciar de
procuradores e outros agentes públicos. Porque, na prática, o que Renan,
Requião e representados desejam é manietar a Justiça, o MP e a PF,
quando parlamentares e políticos em geral forem os suspeitos.
Será um habeas corpus prévio para a classe política. O Congresso
brasileiro vai, assim, na mesma direção que tomou o Legislativo italiano
para destroçar a Operação Mãos Limpas. Esta aberração, se prosperar,
terá de ser levada ao Supremo.
Pois ontem, ao ler seu relatório da CCJ, Roberto Requião desprezou as
propostas que Janot levara ao Congresso no dia anterior. A atitude é
mais uma evidência do jogo de cartas marcadas que transcorre no Senado,
uma conspiração às claras contra a Lava-Jato e qualquer outra ação dos
instrumentos do Estado de repressão à corrupção na máquina pública. Será
um liberou geral, no espírito do que vinha sendo o Brasil até o
mensalão, o divisor de águas de um país em que ricos, poderosos e
políticos não eram punidos, e o atual, em que, pelo menos até agora, a
lei tem valido para todos.
Não que o tema do abuso de autoridade seja desimportante. Nunca será no
país do "você sabe com quem está falando?" e da carteirada, de que se
valem também representantes do Judiciário e do MP, que estão sob pressão
do Legislativo. O erro está em se tratar do assunto no Congresso no
momento em que deputados, senadores, governadores e políticos sem cargos
constam de extensa relação de pedidos de abertura de inquéritos
encaminhada pelo MP ao Supremo. O jogo de interesses e a emoção
interferem no debate sobre este projeto, enviesado desde o início.
Abusos de autoridade existem, pedem uma atualização de leis, mas não
podem servir de Cavalo de Troia para implodir a capacidade de o Estado,
em nome da sociedade, coibir o roubo do dinheiro público.
EXTRAÍDADEROTA2014BLOGSPOT
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