Luiz Felipe Pondé: Folha de São Paulo
Se no futuro existir um medidor de mentiras, o início do século 21 ganhará o prêmio de era da mentira.
Uma filosofia da mentira é algo necessário para qualquer dossiê de temas
urgentes. Sabe-se que a mentira foi duramente condenada pelo filósofo
Immanuel Kant no século 18. Para ele, se ninguém mentisse, o mundo seria
mais ético e mais "transparente". Se vivesse hoje, acreditaria,
provavelmente, na gestão ética dos indivíduos através de uma espécie de
sistema universal de compliance.
Contra essa ideia de um mundo perfeito da transparência, o russo
Dostoiévski, no século 19, visitando feiras de ciência da Europa
ocidental, já percebia a morte da privacidade pelas mãos de um "palácio
de cristal" onde a vida seria um fato "claro e distinto".
No Brasil, nosso maior filósofo da moral, Nelson Rodrigues, em pleno
século 20, clamava "mintam, mintam por misericórdia!". Nelson pensava
que, sem a mentira, a vida em sociedade seria impossível. A mentira,
nesse caso, era uma forma de doçura para com as fraquezas humanas.
Aquele tipo de mentira misericordiosa que sustenta jantares em família,
amizades, longos relacionamentos, silêncios honrosos em nome de um morto
ou a piedade diante de uma feia.
Mas há formas de mentira que precisam ser mais analisadas por nossa vã filosofia.
Refiro-me à mentira a serviço do marketing moral. Esse tipo de mentira
visa vender a ideia de que somos uma época mais avançada em costumes,
afetos e comportamentos. Se formos à tradição filosófica, veremos que a
mentira contemporânea se encaixa no tipo de mentira que se chama
mentiras da vaidade.
Vejamos três casos.
A vaidade ferida, normalmente, se transforma em sua irmã ainda mais
miserável, a inveja. A falsa afirmação do marketing moral de que todas
as pessoas são iguais (uma corruptela da ideia justa de que todos devem
ser iguais perante a lei, mentira essa evidente, na verdade) gera, no
convívio interno a instituições, a mentira travestida de normas
burocráticas.
Alguém sob forte inveja pode, facilmente, querer destruir a fonte de sua
humilhação cotidiana (por exemplo, destruir alguém muito melhor do que
você profissionalmente) lançando sobre essa fonte (uma pessoa, na
maioria dos casos) um conjunto de normas que visa inviabilizar a vida
dessa pessoa.
Se indagado acerca da causa desse conjunto de normas burocráticas
asfixiantes, o mentiroso no exercício de sua função burocrática dirá que
apenas exerce sua função, aplicando as normas.
Como muitas normas burocráticas visam mesmo à destruição da
espontaneidade e criatividade, e riscos inerentes às duas, em nome da
mediocridade segura, o mentiroso burocrático estará seguro no exercício
de sua função. Não prestamos a devida atenção ao fato que a mediocridade
é a forma mais segura de viver que existe.
Fala-se muito em "pensar fora da caixa", mas, na verdade, nunca o mundo
corporativo investiu mais no seu contrário: as pessoas devem ser cada
vez mais medíocres e respeitadoras dos limites dessa caixa.
O dinheiro acumulado sempre leva o seu dono à conclusão de que a melhor
política é a covardia. Apesar de se falar o contrário disso, a verdade é
que o acúmulo tende a tornar você uma formiga contida em seu
formigueiro.
Falar em "pensar fora da caixa" é para o pensamento da "gestão de
ideias" o que a punheta é para o sexo: uma atividade segura, sem riscos
de engravidar alguém.
Quando o risco de perda é muito alto, a melhor política é a mediocridade que paga pouco, mas sempre paga.
As relações entre homens e mulheres nunca foram tão ruins como hoje. O
desinteresse pelo sexo é seu maior sintoma. Sexo suja, implica em riscos
e precisa de um "outro" para ser realizado.
Aliás, uma das maiores mentiras contemporâneas é a masturbação ética ao
redor da "alteridade"(o tal do "outro"). Fala-se muito dele, mas o
eliminamos à nossa volta. Outros na África são mais seguros do que em
casa. A ideia de que as pessoas evoluíram nos afetos é, talvez, a maior
de todas as mentiras contemporâneas.
Suspeito, na verdade, que "involuímos". Somos uns retardados do afeto.
extraídaderota2014blogspot
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