Carlos Ayres BrittoO Estado de São Paulo
O tecido da personalidade humana é costurado com fios de toda sorte. Um deles: determinado tempo de convivência sob o mesmo ambiente físico. Exemplo maior? A família. Ela, a família, como forma habitualmente mais duradoura do convívio humano entre quatro paredes, falemos assim. Dando-se que esse mais prolongado convívio humano num mesmo ambiente físico vai produzindo um maior conhecimento das pessoas entre si e também quanto ao próprio ambiente em que tais relações transcorrem. Mescla de possibilidades do que mais importa como razão de ser desse tipo de convivência: o afeto e a admiração recíprocos. De que são consequências naturais a solidariedade, a tolerância, a paciência e a compreensão. Especialmente esta última, pois quando ela chega primeiro todo problema se apequena. Vale dizer: quando a compreensão chega antes, o problema acusa o golpe. Antídoto geralmente eficaz contra o risco da transformação de crises de existência em toda uma existência de crise.
Não por acaso é que a família recebe da Constituição a honrosa insígnia de “base da sociedade” (artigo 226). Por isso que merecedora de “especial proteção do Estado” (parte final do mesmo artigo). A suscitar nos seus componentes humanos um primeiro e natural vínculo de pertencimento a ela, família. Mas um vínculo ou elo ou relação de pertencimento de ida e vinda: o indivíduo a sentir que pertence a um grupo e de que o grupo também pertence a ele. Ele a influenciar no modo de ser e no destino do grupo, o grupo a influenciar no modo de ser e no destino dele. Dois convergentes fatores para fazer da família uma condição ideal de vida e uma bela razão de viver. Qualificado transporte de um simples ou mecânico estado de sociedade para um orgânico estado de comunidade. Mesma diferença de qualidade que vai da casa ao lar. Daí por que ninguém lê numa porta de residência placa de “vende-se este lar”. Ou de “casa, doce casa”.
O segundo elo de pertencimento do indivíduo é a si mesmo. Agora como compreensão de que é preciso manter consigo próprio um link de autoidentificação. De autoconhecimento. O indivíduo a se perceber como uma entidade ou um ser único. Insimilar. Irrepetível, pois a natureza é o mais original dos artistas: não plagia nem a si própria. Não pisa jamais nem nos próprios rastros, pois sua única questão fechada é a abertura do ventre para a gestação de instantes que não cessam de eclodir com a marca do virginalmente novo. Um a não se reconhecer no outro jamais. Cada qual a se assumir como parte de um todo, é certo, mas também como um todo à parte. Exatamente como nos devemos enxergar no todo da Existência, de que esta célebre percepção de Parmênides (530-460 a.C.) é exemplarmente representativa: “O homem é a medida de todas as coisas”. Cada homem. Cada pessoa humana. Cada ser biopsíquico e anímico a entrever a possibilidade de, na escala da sua evolução em espírito e consciência, poder falar de si para si: “Em tudo que faço, já não faço questão de ser reconhecido/ O que eu faço questão é de me reconhecer” (antigo poema-flash de minha pobre autoria, por certo).
Prossigo. Prossigo para dar conta de um terceiro e sequenciado elo de pertencimento. O que prende o indivíduo à sociedade. Isso sob a forma operacional do altruísmo e do civismo. O altruísmo como categoria da consciência e o civismo como expressão desse princípio jurídico-fundamental que, na Constituição brasileira, toma o nome de “cidadania” (inciso II do artigo 1.º). Um e outro a revelar abertura da pessoa humana para o coletivo. Denotadores, portanto, de espírito público. Expressionais de uma vontade tão forte quanto espontânea de transformar a sociedade em comunidade (de comum unidade). Numa espécie de movimento que amplia, ao máximo, a noção de família para o sentimento de nação. Essa “família amplificada”, na feliz comparação de Rui Barbosa. Movimento que também amplia a ideia de centralidade individual para vê-la materializada em coesão social.
Chego ao derradeiro elo de pertencimento. O mais difícil. O menos usual. Aquele que põe no horizonte relacional de cada sujeito humano a Vida em sua pura objetividade. Trajetória que vai do que há de mais estritamente subjetivo ao mais irrestritamente objetivo. O indivíduo, e só ele, a olhar diretamente nos olhos da Existência. Sem a mediação de quem quer que seja. Sem os olhos emprestados de fulano, beltrano ou sicrano. Logo, movimento que faz da Vida assim em sua total objetividade uma interlocutora da mais absoluta confiança quanto ao sigilo das nossas confissões. Ou desabafos. Ou expectativas. Ou postulações. Elo que talvez seja o mais importante para a revelação do sentido da nossa passagem por este mundo terráqueo mesmo. Sentido, reconheça-se, que os artistas revelam num meio piscar de olhos. Assim como quem fisga o absoluto. Ou como quem pinça a nervura do mais humanizado instante.
Bem, só para lembrar que estamos em época de carnaval, o que fiz até agora foi jogar confete em cada um dos quatro elos de pertencimento. Mas não posso deixar de dizer que um deles encarna a prioridade das prioridades das prioridades das prioridades... É o elo que transcorre no interior de cada família. Ali onde esplende o direito social da maternidade e que tanto se faz de cotidiana mesa de refeições quanto de primeiro banco escolar do ser humano (artigos 6.º e 205 da mesmíssima Constituição federal). Além de quarto, cama e abrigo do vento mais furioso, da chuva mais pesada e do frio mais impiedoso. O particular pedaço de chão de todo indivíduo neste imenso planeta. Mas a sofrer em seus alicerces, aqui, no Brasil dos nossos dias, o abalo sísmico de um desemprego que já alcança mais de 12 milhões de pessoas.
Que todos pensemos nisso, a partir dos governantes, com os ouvidos abertos para esta máxima do genial músico Djavan, que não me canso de repetir: “Sabe lá o que é não ter, e ter que ter pra dar”?
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