Igor Gielow
Folha
Houve corrupção até aqui aparentemente bem apurada para afrouxar processos de controle de qualidade de produtos alimentícios e um provável esquema de abastecimento de partidos políticos, sempre eles.
Claro, não se tratou de misturar papelão a carnes processadas, como já está claro, mas nem por isso deixa de ser alarmante ver a facilidade com que fiscais são corrompidos e o papel de gigantes do setor no enredo.
COISAS DIFERENTES – O argumento segundo o qual devemos confiar na carne brasileira porque ela é aceita lá fora, trombeteado por empresários e pelo governo, é risível.
Primeiro, porque soa como uma admissão de incapacidade nos certificados locais, em particular os emitidos por Estados e municípios. Segundo, porque uma coisa é a carne que vai para fora, outra é a que abastece o mercado interno.
Passemos ao governo. Na instância de investigação, apesar do óbvio interesse público na apuração, é cristalina a falta de cuidado e os exageros em sua condução e divulgação.
VOLUNTARISMO – A entrevista dos delegados foi sofrível e alarmista, e o fato de que não foram pedidos dados técnicos do Ministério da Agricultura ao longo dos dois anos do caso mostra mais do que zelo com eventuais vazamentos: indica o voluntarismo que retomou o protagonismo de algumas ações depois do sucesso institucional da Operação Lava Jato (esta também eivada por excessos pontuais).
Os números gigantes do setor não sustentam o discurso de que ele precisa ser preservado. O problema está na generalização das acusações, daquelas que “pegam” com velocidade assustadora e têm efeitos reais: num mercado competitivo, é óbvio que concorrentes estimularão países a se fechar para o produto brasileiro —ainda que, como demonstrou Mauro Zafalon, a coisa tenda a se resolver rapidamente por uma questão de oferta e demanda.
VACA LOUCA – Por fim, o governo enquanto entidade reativa. Michel Temer e Blairo Maggi (Agricultura) deveriam ler algum dos vários estudos feitos na esteira da debacle comunicativa do Reino Unido quando o país foi atingido pelo episódio da vaca louca, em 1996.
Naturalmente, não há comparação de escopo de segurança sanitária entre os dois casos, já que a vaca louca era (e é) uma ameaça gravíssima à saúde pública. Mas falo no fundo da mesma coisa, que é como lidar com uma crise de confiança.
Rememorando: no caso britânico, durante anos houve a suspeita de que uma doença degenerativa cerebral chamada encefalopatia espongiforme bovina teria se originado no consumo, pelo gado, de uma proteína infecciosa moradora do sistema nervoso de ovinos contaminados – restos de medula e cérebros chegavam aos bois e vacas por meio de ração até os anos 80.
DOENÇA FATAL – Nos anos 90, começaram a surgir casos em humanos de um mal semelhante, chamado vCJD (variante da Doença de Creutzfeldt-Jakob, na sigla inglesa).
Em 1996, o governo admitiu o elo possível: as pessoas poderiam ter comido carne contaminada e desenvolvido a doença, incurável, fatal e agressiva. Foi ordenada uma matança de rebanhos, mas o estrago era inevitável: três anos e meio de embargo à carne britânica.
Eu estava no país havia poucos dias, como correspondente da Folha em Londres, quando o governo fez o anúncio. Houve pânico, redes de fast-food e restaurantes de carne ficaram às moscas, e a comunicação oficial era opaca. Ministros assegurando a “qualidade da carne britânica” lembravam, e muito, membros do governo Temer hoje.
O MEDO PERMANECE – Efetivamente, a vaca louca não virou uma epidemia nem forçou a criação de um “ministério da eutanásia”, como alguns sugeriram lá atrás. Mas o medo, justificável dada a gravidade do mal, permanece até hoje —Alemanha, França e até Brasil, entre outros, tiveram de lidar com suspeitas ao longo dos anos.
Um dos bons estudos sobre o que ocorreu se chama “A Crise da Vaca Louca – Saúde Pública e Bem Público” (1998), coordenado pelo posteriormente chefe da área de saúde da gigante cervejeira AB Inbev, o médico americano Scott Ratzan.
Nos artigos do tomo, fica claro o diagnóstico de que os governos não podem exagerar na retórica do “está tudo bem” ao enfrentar uma crise. Quando se trata de sua saúde, é importante ser firme na convicção de que está sendo feito o melhor e tentar dimensionar ao máximo o tamanho do problema, mas o público tem o direito de permanecer com suspeitas e as autoridades precisam ser simpáticas a isso.
MINIMIZA A CRISE? – A cada notícia de que “o Planalto minimiza a crise”, sobrancelhas se levantam na plateia. Também não adianta muito cobrar a direção da PF ou espalhar o apocalipse vindouro na balança comercial.
Até aqui, as coisas se resolviam tecnicamente neste campo, como nas duras negociações com mercados fechados devido a surtos de febre aftosa. Mas a entrada em cena de elementos como corrupção e a apuração policial, no Brasil pós-Lava Jato, mudaram o patamar.
Se o problema for restrito mesmo só à fração mínima de frigoríficos em questão, que isso seja esclarecido didaticamente e que a lógica do mercado descrita por Zafalon faça o resto. Isso pouparia o governo de vários constrangimentos, a começar por ter de ver Temer num rodízio com embaixadores no domingo à noite e diversos países anunciando a suspensão da compra de carne brasileira na manhã seguinte. E a população seria melhor atendida.
extraídadetribunadainternet
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