por Denis Lerrer Rosenfield O Estado de São Paulo
A Lava Jato desvendou a face oculta da democracia brasileira, tal como
foi implementada na última década. Uma organização criminosa, disfarçada
de ideias esquerdistas, tomou de assalto o Estado, trabalhando em
benefício próprio e no de seus comparsas, que enriqueceram nessa
apropriação partidária do público.
Seria simplesmente hilário o fato de os responsáveis de tal apropriação
dizerem que o atual governo subtrai “direitos”, não fosse o caso de
alguns ainda lhes darem ouvidos. Contentam-se estes com o velho chavão
de não haver problemas com a Previdência, bastando repetir-lhes as
velhas fórmulas carcomidas que levaram o País a este buraco.
Foram precisamente os erros passados que conduziram o País a este
descalabro de depressão econômica e social, para não dizer psicológica
dos que perderam o emprego e nada têm a oferecer em casa a seus filhos.
Os autores desse desastre já deviam ter sido responsabilizados,
condenados e presos. Posam, entretanto, de “oposição”, num claro sintoma
de podridão do sistema político.
Um fato merece ser ressaltado, por ser revelador de certa concepção de
democracia. Quando do enterro da ex-primeira-dama, Lula recebeu pêsames
de vários adversários, por ele até considerados inimigos, entre eles
Fernando Henrique. Tal ato de solidariedade veio acompanhado de
“propostas” de diálogo em nome do Brasil e da democracia, como se o
líder de uma organização criminosa fosse um interlocutor privilegiado.
No caso, parece até que as ideias esquerdistas comuns de antanho
orientariam esse tipo de diálogo, como se elas pudessem encobrir os
crimes perpetrados contra o Estado.
Trata-se de uma nuvem de fumaça que deixa transparecer um diagnóstico
completamente equivocado do que aconteceu com o Brasil nos 13 anos de
governo lulopetista. Não houve “erro político”, mas sequestro da
representatividade política e dos bens dos contribuintes. É uma
tentativa de reatar com um passado que simplesmente não existe mais.
Mas eles não estavam sozinhos nesse empreendimento, contaram com o apoio
da maioria dos partidos políticos, destacando-se o PMDB, o PP e o PDT,
numa salada partidária de causar inveja aos maiores chefs pela
diversidade ideológica e pelo fisiologismo.
A nova lista de Janot é de estarrecer até os mais incautos, por envolver
seis ministros atuais mais quatro anteriores do atual governo, os
ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, quatro de seus ministros,
incluindo dois da Fazenda. A lista estende-se, agora, também a
dirigentes do PSDB, incluindo potenciais candidatos à Presidência da
República. Isso sem contar os presidentes da Câmara e do Senado e um
número expressivo de senadores e deputados.
A classe política foi literalmente dizimada, deixando de exercer a sua
função de representatividade. Como pode uma democracia sustentar-se sem
uma adequada representação política, respaldada por partidos idôneos e
com ideias de nação?
A situação é bem mais problemática do ponto de vista institucional
porque a linha sucessória presidencial será atingida se os presidentes
da Câmara e do Senado forem condenados.
Não se trata de fazer um juízo de valor sobre essas pessoas, que têm seu
direito legítimo de defesa, mas de apontar uma questão da maior
gravidade, qual seja, a de uma democracia que pode tornar-se acéfala.
Uma sociedade sem alternativas pode rumar para aventuras, agarrando-se a
qualquer pessoa que lhe apareça como uma âncora, por mais falsa que
seja.
A sociedade hoje percebe a classe política como um bando de corruptos,
não faz mais a necessária distinção entre bons e maus. Coloca-os todos
no mesmo saco, como se não houvesse diferença a ser feita.
Por seu lado, parlamentares e ministros em nada ajudam, pois pensam
apenas em sua própria salvação. Algo chamado Brasil ou bem público
simplesmente desaparece do horizonte. O sucesso do governo Temer
torna-se tributário da aleatoriedade de tais movimentos, pois estratégia
vem a significar sobrevivência.
Exemplo particularmente gritante se encontra nas mais diferentes
tentativas de anistia (ou melhor, autoanistia, o que seria logicamente
contraditório) do caixa 2, ampliando-a para as doações eleitorais
legais, independentemente de sua origem. Os envolvidos na Lava Jato
procuram tão somente safar-se de condenações e da cadeia.
Evidentemente, cada caso é um caso, cuja decisão cabe aos juízes e
ministros, que discriminam as responsabilidades individuais, assegurando
a todos o direito à legítima defesa.
Contudo não estão clamando pelo Estado Democrático de Direito, mas pelo
“estado de salvação individual”. Pretendem ocultar todo o sistema de
corrupção que os levou ao poder. É como se os crimes da Odebrecht e de
outras empreiteiras e dos frigoríficos fossem corriqueiros na vida
brasileira. O anormal mudou de nome.
Façamos a seguinte analogia. Se o narcotráfico tivesse irrigado as
campanhas eleitorais, os partidos e os bolsos dos políticos, não se
deveria investigar a origem dos recursos? Seria tudo considerado legal,
porque devidamente declarado aos tribunais eleitorais? Os Odebrechts
seriam simplesmente substituídos pelos Fernandinhos Beira-Mar e tudo
estaria “normal”?
A situação da democracia brasileira é deveras preocupante. O que a Lava
Jato está mostrando é a existência de um propino-Estado, equivalente a
um narco-Estado, numa versão mais branda e, aparentemente, politicamente
aceitável. Não convém, porém, desconhecer a gravidade da situação,
edulcorada pela cordialidade da classe política entre si, que dá as
costas para o País.
Há um divórcio crescente dessa classe política em relação à sociedade,
cuja opinião é de condenação moral generalizada. Ninguém é poupado. E a
democracia encontra-se ameaçada se passos importantes não forem dados no
sentido da moralidade pública pelo governo, pelo Senado e pela Câmara
dos Deputados.
extraídaderota2014blogspot
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