Marco Antonio Villa: O Globo
No Brasil, a corrupção acabou se transformando em um sistema. Deixou de
ser um simples negócio entre corruptor e corrupto. Foi construída uma
ampla teia de relações sociais, políticas e jurídicas permitindo e
legalizando a reprodução, numa escala nunca vista na história da
Humanidade, da corrupção. O estado democrático de direito edificado pela
Constituição de 1988, por paradoxal que seja, garantiu e protegeu a
expansão deste sistema a tal ponto que inviabilizou o funcionamento da
máquina estatal.
A crise econômica e a falência dos estados são manifestações explícitas
dos limites deste sistema. Sem enfrentar a corrupção, o país não sairá
da crise econômica e, pior, vai desmoralizar a democracia a tal ponto
que poderá abrir caminho para soluções extraconstitucionais.
A elite dirigente tem na corrupção seu instrumento de gestão da coisa
pública. Nos Três Poderes, a corrupção é parte intrínseca do
funcionamento de uma república carcomida. Do conflito de interesses à
propina para obtenção de alguma vantagem, o Brasil acabou gerando um
sistema imune à transformação, petrificado, e que reage a qualquer
tentativa de moralização. Isto porque os participantes deste sistema não
conseguem mais sobreviver sem se locupletar com o saque do Estado: são
dependentes da corrupção.
A ladainha dos rábulas transformou a defesa da corrupção em segurança
jurídica. Propalam aos quatro ventos que o combate aos desvios dos
recursos públicos coloca em risco a ordem democrática. Contam com apoio
entusiástico das instituições corporativas.
Recebem honorários fabulosos sem questionar a origem. Defendem corruptos
como se fossem verdadeiros heróis nacionais. Usam e abusam das relações
nada republicanas com os tribunais superiores de Brasília. A
Constituição e todo arcabouço jurídico são utilizados na defesa dos
malandros federais, estaduais e municipais. E os causídicos exibem
orgulhosos seus feitos. Sem nenhum pudor, apresentam nas revistas
consumidas em consultórios de médicos e dentistas suas casas, viagens,
toda uma vida de luxo e riqueza.
O sistema tem apoio de toda a corte que cerca a Praça dos Três Poderes.
São milhares de parasitas que dependem da reprodução da corrupção. Desde
a indústria de luxo, passando pelo mercado imobiliário, pelas diversões
(dando um destaque especial às garotas de programa), as famosas
consultorias e até escritórios especializados na defesa, proteção e boa
imagem dos corruptos quando pegos com a mão na botija.
O grande capital é parte deste sistema. Está de tal forma integrado à
corrupção que não consegue viver sem participar do saque da coisa
pública. Entende o Estado como fonte de riqueza; da sua riqueza. Usa da
estrutura governamental para fomentar seus negócios aqui e no exterior. E
exporta seus métodos para o mundo como se fossem novos modelos de
gestão, uma contribuição brasileira à administração de empresas.
O sistema conta com o decisivo apoio das cúpulas dos Três poderes. Sem
isso, ele não se mantém e nem se reproduz. Precisa ter o domínio mais
completo da máquina estatal. Nada pode escapar a sua sanha. E aos que
tentam romper as amarras da corrupção, o sistema busca paulatinamente
cooptá-los. Quando não consegue, isolá-los.
Não causa estranheza a fúria do sistema contra as ações da Lava-Jato. É
até natural, absolutamente compreensível. Afinal, o conjunto das
operações, as investigações, os processos e as condenações atingem
interesses consolidados há décadas na estrutura estatal. O modus vivendi da
corrupção está sendo ameaçado. E a ameaça vem da periferia do poder, e
não do centro. É inimaginável supor que as condenações da Lava-Jato
ocorreriam no ritmo e na severidade das penas se os processos corressem
nas cortes superiores de Brasília: todos sabem como a Justiça é por lá
operada.
A fúria, especialmente contra Curitiba, conta com apoio também dos meios
de comunicação de massa. Os formadores de opinião ocultam sua
participação no sistema com um discurso hipócrita de defesa da segurança
jurídica e dos riscos que o combate à corrupção podem trazer à
recuperação econômica. Isto mesmo, para eles, é o combate à corrupção — e
não ela, propriamente dita — que gera turbulências na economia. E
ecoam, como papagaios do poder, diariamente sua ladainha.
Dada a gravidade da crise política, econômica e ética, este é o momento
de enterrar a República construída em 1988. Ela foi de tal forma tomada
por interesses antipopulares que não mais abre espaço a uma mudança. As
forças de conservação são muito mais poderosas que as forças de
transformação. O sistema não se autorreforma.
Vivemos um impasse. A sociedade civil mobilizada conseguiu derrotar o
projeto criminoso de poder petista. Foi uma importante vitória, é
verdade. Mas o sistema continua lá, operando com novos personagens. Não
deseja nenhuma mudança estrutural. Pelo contrário, tudo fará para
impedi-la. E conta com amplo apoio no coração do poder. Irá — como já
está fazendo — reproduzir o discurso de que as instituições estão
funcionando e que passaram no teste do impeachment. Falácia: pois o
processo que retirou Dilma Rousseff da Presidência da República
demonstrou que o modelo de Estado edificado pela Constituição de 1988 é
inoperante frente às mazelas da corrupção.
Não será tarefa fácil vencer o sistema. É mais provável a sua manutenção
com reformas cosméticas, sinalizando hipocritamente que o clamor
popular foi ouvido pelos donos do poder. Porém, a história pode
percorrer caminhos inesperados, desconhecidos.
extraídaderota2014blogspot
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