Valentina de Botas:
A corrupção é cultural, uma apropriação
cultural, na infeliz expressão famosinha? A expressão teve destaque na
redessociolândia – o mundinho que pensa conter o mundo e não que está
nele contido – e na imprensa pouco antes do Carnaval, quando uma jovem
branca usando turbante foi assediada no metrô por uma militante negra
que a acusava, “enquanto não negra”, de usurpar um símbolo da cultura
negra. Os coletivos e o restante dos opressores porta-vozes dos
oprimidos escreveram textões ampliando a denúncia em flagrante prática
do que os intolerantes combatem: a não ser que sejam todos sumérios,
povos ao quais se atribui a invenção da escrita e que habitavam a
Mesopotâmia ou a Ásia atual, escrever aquela inutilidade é um ato de
apropriação cultural.
No belo “História Ilustrada do
Vestuário”, publicado pela Publifolha em 2009, as pesquisadoras
americanas Melissa Leventon e Livia Almendary, com lindas ilustrações de
Auguste Racinet e Fiedrick Hottenroth, informam que o turbante não tem
data e local de nascimento definidos, mas tudo indica tempos
pré-cristãos e uma origem asiática, e não africana. Os africanos fizeram
uma versão linda e, ao contrário dos asiáticos, eram as mulheres que o
usavam. Os gregos antigos tiveram o seu e idem a moça branca do metrô
que o usava à espera do crescimento dos cabelos ceifados pela
quimioterapia. Essa antítese da estupenda capacidade dos grupos humanos
de produzir cultura esboroando o insustentável princípio da pureza –
porque se interseccionam e se transformam no que reconhecem e estranham
entre si e dentro de si fazendo disso o fio no labirinto imaginário da
civilização – ameaça a nossa macarronada de domingo na tara patológica
dos movimentos esquerdistas em patrulhar a vida privada e as escolhas
individuais.
E daí? Nada, só a cultura da
intolerância e do desconhecimento cuja semeadura encontrou chão e clima
propícios na clivagem artificial do nós x eles inaugurada pelo
lulopetismo, no ofício dos tiranos em fomentar a estupidez. O Brasil,
como labirinto imaginário de cada brasileiro, nunca fora um só, mas a
nação heterogênea só tivera o bem e o mal em lados estanques sob regimes
autoritários em que os donos do poder declaram-se “nós”, o bem. Sob os
governos do PT, o país se esgarçou a ponto de os brasileiros mal se
reconhecerem como nação e às margens do abismo. Enquanto o PSDB, essa
Geni da política que apanha da esquerda e da direita, uniu a população
na formidável implantação do Plano Real, o PT dedicou 13 anos à
estratégia obsessiva de dividir o país para tiranizá-lo. Todos iguais? A
seita que apregoava ser diferente provou no poder que nenhum
gangsterismo se iguala a ela e está conseguindo forjar a igualdade
embusteira para fragmentar seu legado criminoso inigualável. Se essa
canalhice subjacente à corrupção disseminada triunfar, a Lava Jato terá
sido mais uma esperança ou fio perdido no labirinto.
A clivagem seminal alcança a
reforma previdenciária cuja rejeição no Congresso invalidará a PEC do
teto dos gastos, já que este desabará sob o déficit previdenciário:
segundo o ótimo Mansueto de Almeida, sem a reforma da Previdência, em
2024 a arrecadação da União ou pagará pensionistas ou contemplará os
outros itens do orçamento. A coisa é complexa, claro, mas não deveria se
prestar à ideologização e a clichês vazios do bem contra o mal, e sim
unir a nação e mereceria integrar a pauta-mosaico dos brasileiros de bem
que irão às ruas no dia 26 dando a si mesmos a oportunidade de
reconhecer que, no mínimo, temos governo desde a saída tardia daquela
senhora infeliz que fala suíço e, ainda que se faça a ele a sempre
necessária oposição a qualquer governo, este difere dos dois anteriores
na própria disposição de fazer reformas.
Mas Temer e quem o apoia
podem contar com a má vontade imparcial e a antipatia isenta de quase
toda a imprensa para qualquer decisão e com os ataques das corporações
do funcionalismo e dos políticos para garantir a sacrossanta
aposentadoria integral arrancada da miséria dos aposentados da
iniciativa privada, ignorando que tudo foi profanado e a única garantia é
ninguém receber mais nada.
Não sei se a corrupção é cultural, o que
sei é que cultura também se transforma ou a escravidão ainda seria
prática corrente até hoje. Ora, os sistemas culturais, para continuar a
fazer sentido em dada sociedade, mudam no tempo porque ela também muda,
ambos são históricos portanto. A cultura naturaliza práticas. Tão
corriqueira no Brasil, a corrupção foi naturalizada e seus adeptos
reagem não apenas ao combate a ela, mas também ao da percepção
histórica, autossustentável e autorrealizável: o odioso, conveniente,
simplista e falso todos-são-iguais.
Os brasileiros que desafiam essa
percepção, buscando um mínimo de racionalidade, ordem e ética no
cotidiano, celebramos a Lava Jato porque ela demonstraria que, ainda que
fossem todos iguais, há coisas que só o PT, o imperador da
propinocracia transnacional, pode fazer: destruir o país não só por
roubalheira, incompetência e nefasta visão de mundo, mas também
perpetuando aquela percepção que, senão cultural, se pretende imutável.
O diabo é que a lentidão da
Justiça dá a sensação de haver menos punições do que prometem
sucessivas delações-do-fim-do-mundo, depoimentos-bomba, coletivas de
imprensa e vazamentos sem contexto e isso abandona o país numa neblina
em que nuances se perdem, o pensamento fica abrutalhado pela sensação de
exaustiva urgência diária e a preciosa visualização de uma custosa
recuperação já palpável se esfumaça. Há quem pense que os leitores, e
não a Justiça, julgarão antes. Pode ser. Mas então Maluf, Renan e
Collor, representantes daquela corrupção de raiz e ausentes da lista
“nutella” de Janot, têm sido inocentados sucessivamente.
Quando Rodrigo Janot descarta a delação
de Leozinho Pinheiro, alegando vazamento e, no entanto, mantém a dos
executivos da Odebrecht que originou a sigilosa lista cujo solene
vazamento nos devolve ao nebuloso são-todos-iguais, a opacidade dos
critérios preocupa. Ademais, um Procurador-Geral, cujo escopo das
atribuições não contempla “depurar o sistema político”, pois o faria
necessariamente segundo uma orientação política e aí, Santo Deus!, que
comemora numa carta dispensável os três anos de uma investigação que
identificou o comandante máximo da roubalheira, mas o deixa solto para
fazer comício até num depoimento, deveria, máxima vênia, ir catar
coquinho.
Depois da adulteração de remédios,
gasolina, leite, democracia e da história, as instituições deveriam
clarear a neblina. Só que os brasileiros alarmados descobriam em dois
dias o que a Polícia Federal não soube em dois anos de investigação:
“carne podre” é jargão para carne sem inspeção, e não estragada; o
papelão é o da embalagem da carne, e não uma mistura ao produto; os tais
ácidos ascórbico (tipo um redoxon) e sórbico não causam câncer; dos
vinte e um frigoríficos suspeitos de irregularidades, três foram
interditados num mundão de quase 5 mil estabelecimentos; cabeça de
porco, a fraudadora de salsichas, é uma iguaria. A imprecisão e o
alarmismo da PF parecem mais graves do que os crimes que ela denunciou.
Contudo, ela não ficaria melhor no retrato se a coisa toda for como
apresentou, pois então os investigadores terão permitido que a população
consumisse produtos perigosos por dois anos.
A cultura rala do são-todos-iguais é uma
cilada que nos impede de nos apropriarmos de coisa muito mais
substanciosa: nosso belo dever de imaginar que há um labirinto e um fio
(Jorge Luis Borges).
extraídadeblogdeaugustonunesopiniaoveja
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