Jornalista Andrade Junior

terça-feira, 21 de março de 2017

Um país na tempestade

Valentina de Botas:





Não sabia que gente viva morria. Os mortos de que ouvira falar até os meus cinco anos, eu os conhecera depois de morridos ou matados. No desassombro de criança curiosa que espreita mistérios, fugi da cozinha do casarão de minha tia-avó levando o prato de banana-da-terra cozida com canela que mamãe me servira no lanche da manhã. Na sala grave, com o relógio carrilhão de pé desativado, espelhos cobertos, quadros virados, cadeiras dispostas como uma plateia de frente para a sólida mesa imensa enfeitada pelo caixão onde meu tio-avô jazia, eu me sentei com o prato no colo, balançando os pés enfiados em meias curtinhas de renda e sapatinhos rosa envernizados. A ventania anunciando chuva me deu o pretexto de ir até o janelão na cabeceira do caixão e olhar mais de perto o conteúdo. De costas para meu tio-avô, olhando a chuva oblíqua, eu o ouvi me chamar cortando o barulho do aguaceiro: essa menina!
II
Na semana passada, intelectuais assinaram um manifesto pela candidatura daquele que o Ministério Público Federal apresentou (mas não prendeu!?) como o comandante máximo da organização criminosa que sequestrou o Estado e arruinou o país. A irrelevância de intelectuais desmoralizados no instante mesmo em que submetem o pensamento ao lulo-banditismo restringiu o vexame ao território onde um país ainda tenta existir. Falou-se, com razão, da precariedade moral e gramatical do texto, mas faltou perguntar àqueles signatários o que fizeram pelo conhecimento no país que não tem nenhuma universidade entre as 150 melhores do mundo. A defesa de um bandido que depreda o conhecimento, o apego a boquinhas em guildas ideológicas nas mofentas universidades públicas e tantas privadas de onde pontificam quem vive e quem morre nos meios editorial e acadêmico-cultural, a substituição da leitura/pesquisa pela burocracia universitária? O confronto foi oportuno, mas o essencial para o país não se fez ouvir no alarido.
III
Ninguém adivinharia que o duro começo de vida de mascate pelo sertão daria ao meu tio-avô o único armazém da região, o Tend Tudo; o casarão na avenida principal da encantadora cidadezinha encarapitada nas serras pernambucanas; viagens e conhecimento; estudo e ilustração; prestígio e a amizade infectada pela adulação em graus diferentes do delegado, do padre, dos políticos e dos comerciantes das redondezas; o respeito e a afeição dos demais habitantes. O custo foi desgraçado: a morte dos quatro filhos. O casal de gêmeos ainda bem novinhos foi levado por uma combinação de misericórdia divina e disenteria quando a fome e a miséria grassaram por ali numa estiagem de quase cinco anos. Dos outros dois, já adolescentes, um ataque tenebroso de uns cangaceiros deu cabo. O acontecimento gravou no espírito dos meus tios-avós tão fervoroso repúdio à violência que a brutalidade da execução de Lampião relembrou a dor pelo avesso. E eles, tão crentes meus Deus, se recolheram em jejum e preces para sobreviver àquele dia. Enquanto ela se entregaria à caridade e à adoção informal das crianças do populoso ramo pobre da família, ele entregou o coração à ideia fixa de que a morte não o surpreenderia.
IV
Há 10 dias, Marcelo Odebrecht estarreceu o país, em transe diário, revelando que entregou R$ 300 milhões de propina ao PT entre 2009 e 2014, operados por dois ministros de Estado, Palocci e Mantega – a isso a seita nefasta rebaixou a nação. Precisamente nessa redução e na incompetência dolosa dos petistas, os políticos metidos até o último voto com a ética 2 do caixa 1 e os vícios do caixa 2 se diferem daqueles que saquearam o Estado patologicamente, tecendo uma rede internacional com regimes eleitos por grana roubada e com delinquentes de colarinho branco Estado-dependentes. Igualar crimes de caixa 1-2 ao esbulho institucional da súcia lulo-petista derrotará a Lava Jato e do país, malogro para o qual contribui a gritaria estrepitosa em torno do delito menor que o agiganta até que se dilua a obra medonha do PT. E, assim, restaremos entre Guilherme Boulos e Maria Silva: é essencial lembrarmos que não há santos na política, nem fora dela.
V
Homem parrudo, de quase 2 metros, pacífico, meu tio-avô só saia de casa armado; dizia que por cautelar persuasão. Nunca disparou um tiro, mas quase matou a mulher de susto quando vieram entregar em casa o caixão. De pé ao lado da peça intrusa entre a mobília preciosa, um braço estendido ao longo do corpo miúdo enquanto a mão oposta ajeitava o cabelo curto impecável, Adalgisa perguntou com o fio de voz que o choque permitia o que diabos era aquilo, homem de Deus. Honorato contou que o melanoma se confirmara e o médico lhe dera só três meses, se tanto, para colocar a vida em ordem. A vida tem a ordem possível, doutor, eu vou é organizar a morte.
VI
MO disse também que Michel Temer lhe pediu doação para a campanha sem falarem de valores e, finalmente, que não fez doações ilegais a Aécio Neves. Tão desolador quanto o depoimento ao ministro Herman Benjamin do TSE, foi contemplar a imprensa que conta, aquela que se agigantou resistindo à censura no regime militar, apequenar-se na rendição à patrulha petista e/ou à ideologia que a intoxica e pode matar o que ainda resta de jornalismo digno da definição. Deformando o que disse MO, portais de revistas e jornais fizeram de Temer e Aécio os presidentes do Brasil da última década que o acanalharam berrando como crimes o não-crime de pedir doações e o não-crime de ter recebido doações legais. Quando surgiu a notícia de que o tucano recebera R$ 9 milhões por vias legais, esse grão de areia limpo encobriu a montanha imunda dos 300 milhões dados ao PT. A imprensa é livre para não gostar de Temer, a imprensa é livre para não gostar de quem o apoia, a imprensa é livre para querer a volta das esquerdas, a imprensa é livre para perder eleitores, a imprensa é livre. Então, por que não se liberta?
VII
Meu tio-avô pediu pressa e esmero na fabricação do caixão. Daquele dia em diante, passaria algumas horas diárias dentro do esquife para se familiarizar, pois a morte não o pegaria de surpresa. Ninguém entendeu e Adalgisa pediu à mamãe, numa carta cheia de solidão, que a sobrinha – a filha que ela não teve – estivesse com ela, mandaria as passagens de avião; que venha com as três meninas, há boa acomodação e os ares verdes farão bem a elas, visse? Fomos e, vendo a chuva oblíqua, ouvi Honorato me chamar. Não sei se pela transição entre o mundo dos mortos e o dos vivos ou se por outra ausência que já se insinuava, ele esquecera o nome da sobrinha-neta afilhada.
VIII
Claro que o tal foro privilegiado tem de ser reformulado (via Congresso, ministro Roberto Barroso), mas a discussão perde-se do essencial: a impunidade não precisa do STF para triunfar, ela tem o território inteiro onde deveria haver um país. Não? Vejamos. O ex-goleiro Bruno foi solto porque a Justiça demorou cinco anos para não julgar um recurso; Pimenta Neves, o ex-diretor do Estadão que assassinou com dois tiros pelas costas a namorada diante de testemunhas, ficou 11 anos solto até ser preso por 7 meses e reconquistar a liberdade; o Mapa da Violência informa que míseros 8 de cada 100 assassinatos são levados a julgamento no Brasil. Tudo isso fora dos salões privilegiados do STF. Tudo isso num país com 140 mil servidores num Judiciário pesado de mordomias e incúria; com uma polícia que, obsoleta e mal paga, pouco investiga. O foro privilegiado é um privilégio de ricos (com seus advogados que protelam tudo) e de pobres (com a incompetência do Estado que protela tudo). É o privilégio do crime, especialmente do crime contra a vida, essa coisa sem valor nem serventia num país de trágicos privilégios impunes.
IX
Bela a tempestade de um mês atrás como espetáculo, com o granizo se granulando escandalosamente na pequena varanda de onde eu assistia a tudo. Voltava de uma visita aos meus amados Adalgisa e Honorato que se mudaram para São Paulo desde que o mal de Alzheimer se agravou e vi os olhos azuis-acinzentados vazios sem a sentinela que vigiava a morte. O melanoma não o levou, mas Honorato já não estava mais ali. No começo, a chuva era oblíqua e me lembrei do poema do Pessoa “Chuva Oblíqua”: “Não sei quem me sonho…”.
Depois, o peso de tanta água corrigiu o ângulo e o aguaceiro se endireitou e se adensou tão completamente que apagou a paisagem clara minutos antes, transformando-se no mundo. Não tem mais mundo, só tem a tempestade e este camarote meu, tão precário que me faz pensar em quem não conta nem com um assim e em quem, dispondo de abrigo muito mais bem protegido, grita repreendendo chuvas e ventos como se todo o espetáculo não tivesse sido preparado na anterior calmaria aparente. Gritando, só ouvem a si mesmos, e não o essencial.





























extraidadoblogdeaugustonunesopiniaoveja

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