MODESTO CARVALHOSA ESTADÃO
Longo período decorreu desde que, no Programa Roda Viva, da TV Cultura, de 15 de dezembro de 2014, foi apresentado e debatido um instrumento efetivo de combate à corrupção nas obras públicas. Trata-se do comprovado sistema conhecido como performance bonds, adotado nos EUA há exatos 120 anos e que tem o mérito de quebrar a interlocução direta das empreiteiras, geneticamente corruptas, com os agentes públicos prazerosamente encarregados de fraudar as concorrências e permitir o superfaturamento das obras públicas.
A resposta da opinião pública foi muito positiva à proposta, tendo havido, desde então, efetivas contribuições de especialistas e de entidades no sentido de formular um projeto de lei que implementasse essa solução estrutural de combate à corrupção. Um anteprojeto de lei foi efetivamente elaborado, a pedido do senador Cássio Cunha Lima, que em julho deste ano logrou ingressar como o PL n.º 274 no Senado, com rito terminativo na Comissão de Constituição e Justiça.
Convém lembrar, a título de curiosidade, que no mesmo dia do lançamento da proposta deperformance bond no Roda Viva a presidente, ora afastada, declarava, em seu discurso de diplomação no Tribunal Superior Eleitoral, que não deveriam ser punidas as empreiteiras corruptas, pois geravam empregos... E essa política de prevaricação, em face das empreiteiras do cartel da Petrobrás, foi efetivamente seguida, mediante a leniência escancarada da CGU, que jamais promoveu qualquer processo administrativo contra elas durante todo o governo dilmista. Ao contrário, continuaram elas a contratar livremente com o poder público e dele obter os financiamentos necessários a novas obras, no Dnit e em outros antros de corrupção do governo petista e suas aparelhadas estatais.
Mas esse quadro parece ter mudado. Já na segunda semana do novo governo o Ministério do Planejamento, por determinação do presidente em exercício, encampou o projeto do senador Cunha Lima, a fim de, efetivamente, implementar num prazo razoável a obrigatoriedade do regime de performance bond nas obras públicas contratadas.
A matéria está no Congresso não somente pelo projeto referido, como também por meio de emendas que o Ministério do Planejamento procura introduzir em outro projeto, n.º 559, do senador Fernando Bezerra, que deverá ser votado nas próximas semanas.
Há, com efeito, todo um movimento do atual Poder Executivo e de suas lideranças parlamentares visando à adoção do performance bond nas obras públicas. E esse sistema será um novo marco estrutural nas relações público-privadas no Brasil, em matéria de obras públicas.
Como é notório, prevalece entre nós o arcaico capitalismo de laços (crony capitalism), que se caracteriza como uma economia em que o sucesso nos negócios depende, necessariamente, das relações entre os empresários e os agentes públicos, tanto administrativos como políticos. No nosso caso, esse capitalismo de laços se caracteriza, portanto, como o regime da relação direta entre as empreiteiras e os agentes do Estado.
Essas construtoras de obras públicas, na sua totalidade, são controladas por grupos familiares, o que permite uma manipulação corruptiva continuada e cultivada dos agentes políticos e administrativos. Nessas empresas familiares quem manda são os controladores, muitas vezes fora do alcance da Operação Lava Jato.
Em alguns casos, esses familiares que operam o esquema da corrupção não são nem diretamente acionistas, refugiados que estão numa cadeia internacional de holdings. Essa verdadeira casta de empreiteiras de família, difusamente entrosadas com as autoridades, permite, que se formem os cartéis de obras, dos quais também participam multinacionais sediadas no exterior.
O remédio fundamental, portanto, para o combate estrutural à corrupção no setor público é o rompimento desse capitalismo de laços, ou seja, a quebra da interlocução, direta e promíscua, das empreiteiras e dos fornecedoras com os agentes políticos e administrativos. E esse rompimento se dá pela presença, no contrato de obras públicas, de uma seguradora que, obrigando-se a ressarcir o Estado, no caso de descumprimento, passa a fiscalizar permanentemente a respectiva obra, quanto aos prazos, à manutenção do preço ajustado e à qualidade dos materiais empregados.
O regime de performance bonds ampara-se em três elementos fundamentais: a obrigatoriedade da contratação da apólice em todos os contratos de obras públicas de valor relevante, a importância segurada em 100% do valor do contrato e a atribuição do poder de permanente fiscalização da obra e dos recebimentos/pagamentos pela seguradora. Esta passa a ser a principal interessada no cumprimento do contrato entre o poder público e a empreiteira.
Esse poder-dever de fiscalização permanente que tem a seguradora contratada pela empreiteira, a favor do ente público, acaba por eliminar as fraudes na execução da obra, sobretudo, nas mediações, nos aditivos e seus superfaturamentos, no cumprimento de prazos e na efetiva qualidade dos materiais utilizados.
Tem, ademais, a seguradora da obra pública três opções no lugar do puro e simples pagamento do sinistro, por inadimplemento da empreiteira: poderá ela própria assumir a obra, por sua conta e risco; ou poderá contratar, sob sua responsabilidade, outra empreiteira para concluir os trabalhos; ou, ainda, financiar a empreiteira inadimplente para que prossiga na sua execução. Essas alternativas ao pagamento puro e simples do sinistro dão maior viabilidade ao prosseguimento das obras, atendendo ao interesse público na sua efetiva conclusão.
A cidadania espera que esse movimento em torno da adoção do performance bond nas obras públicas seja levado avante pelo Congresso Nacional, o que permitirá uma mudança estrutural indispensável no combate à corrupção no setor público.
*Modesto Carvalhosa é advogado em São Paulo
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