Valentina de Botas:
Língua é mais do que dicionário e, ao contrário do que diz o senso
comum, ele é submetido por ela. Não sou linguista como o leitor que veio
ensinar o saber infértil dele, sou somente formada em Linguística, o
que não é suficiente para me fazer linguista. Mas me lembro das aulas de
Lexicografia e Lexicologia, na USP, em que a grande e querida mestra
Maria Aparecida Barbosa esclarecia que os lexicógrafos coletam na fala
viva, aquela em uso, o conjunto lexicológico que povoa o dicionário.
A lexicografia, belíssima ciência rigorosa e complexa com
epistemologia e objeto próprios, não inventa nem impõe o léxico: ela o
revela encarcerado e inerte na exatidão frígida do dicionário. Um
linguista que preste está consciente de que é preciso tirar as palavras
dessa assepsia e sujá-las com o humano, deixando-as livres na língua
para, só então, avaliar a adequação e inadequação delas.
Para satisfação do leitor que não aprendeu nada com o saber,
“presidenta” existe, o vocábulo embolorado jaz em qualquer dicionário da
língua portuguesa; ninguém negou isso e o linguista sabujo supor que um
jornalista com 40 anos de textos perfeitos ou que todos os incontáveis
leitores dele ignoram isso não só rasteja entre patética sonsice e
tristonha arrogância, mas também entre a chatice e o ridículo. A questão
nunca foi de correção lexical, mas de mistificação, prática adorada por
todo governante populista e autoritário.
O candidato a linguista oficial do reino extinto afirmou que “falo
como linguista”; não, lamento, mas estudei alguns dos maiores e melhores
linguistas brasileiros, li por dever e prazer linhagens de linguistas, e
nenhum dissocia a correção no uso de uma palavra do uso dessa palavra –
a liberdade que ela respira na língua submetida ao contexto,
circunstâncias, motivações, afetos, razões, etc., do falante.
Nessa perspectiva, o lexicalmente correto “presidenta” é usado por
Dilma Rousseff para inaugurar o populismo de gênero; a mulherzinha
negligente com a língua e o país se valeu do insuportável politicamente
que fantasia de assertividade o que é só canalhice – felizmente, esse
assédio ao pensamento surgiu depois da invenção do humor, do sexo, do
amor e da literatura ou seríamos uma espécie ainda mais tristonha no que
temos de tristes – para adotar o vocábulo extemporâneo como mais uma
forma de desviar a atenção do embuste real e grotesco em que se
configurou enquanto construía uma projeção mítica e mistificada de si
mesma.
À combatente de uma ditadura para instaurar outra; à supergerente que
passava as madrugadas examinando projetos, mas alega que não sabia dos
detalhes de Pasadena; à mulher que verga, mas não quebra porque é mais
divertido quebrar um país; à governante que defendia o diálogo com o
Estado Islâmico, mas não falava com o Congresso; a essa farsante, enfim,
não basta ser presidente, isso qualquer um ou uma pode ser: ela é
“presidenta”.
Em junho de 2013, num evento da CUT no Rio Grande do Sul, Dilma
declarou que tinha nascido em todos os estados da federação e que “uma
presidente tem de ser nascida e criada em todos os estados da
Federação”. Claro, sabemos que isso é uma estultice tão colossal que nem
chega a ser mais uma mentira da usina lulopetista, mesmo Dilma e o PT
sabem que sabemos. Mas e daí? A vigarice desse discurso aposta não na
mentira de partida, mas na de chegada: na resultante do extrato das
falas de Dilma que vão preenchendo a estrutura mistificadora tão
bem-sucedida com o jeca. Assim é a máquina de mentira que consegue
parir uma Dilma em cada estado, costurando esse ser grotesco
pan/suprabrasileiro.
Era a metástase do cinismo petista replicando a mistificação, a
estrutura que forjou o perfil soteriológico do líder deles. Assim como o
jeca, revestido da mitologia que inventou um passado para ele, Dilma
ganhou um projeto para a própria figura mítica. Portanto, nascer em
todos os estados brasileiros atribui-lhe uma espécie de ubiquidade
ontológica aristotélica, como se (e apesar de), tendo cada uma das
naturalidades brasileiras, as 26 particularidades fizessem da presidente
o ser cuja natureza fosse a mais genérica, ampla, integral, abrangente,
completa e plenamente brasileira.
Autoritária como toda figura erigida na mentira, manipuladora como
todo populista e de dentro do seu raquitismo intelectual e moral, na
confluência de suas 26 reencarnações simultâneas geridas pelo único
neurônio, jamais renunciará à construção mistificadora para compreender o
Brasil e tornar-se tudo o que não é: apenas uma brasileira decente e,
então, uma presidente decente.
Sugiro ao leitor-linguista-de-uma-palavra-só levar o conhecimento
dele para tomar sol, exercitá-lo ao ar livre das ilusões a que o saber
induz quando sabemos sem aprender, que o areje com dúvidas e incertezas
porque é para isso que o conhecimento serve, pois, como dizia Clarice
Lispector, a nossa ignorância (o que não sabemos) é o nosso melhor lado;
e pare de culpar os dicionários.
EXTRAÍDADEAUGUSTONUNESFEIRALIVREVEJA
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