Fernão Lara Mesquita:
Aquela abertura foi, sim, uma síntese, mas do nosso velho drama roteirizado. A mais moderna tecnologia emprestando cintilância à mais retrógrada e opaca das mensagens assinada, proverbialmente, pelos noveleiros da Globo ultraespecializados nesse tipo de embalagem. Um gostinho para o mundo da antiutopia que, desde os idos de 1936, é entoada diariamente como um mantra sagrado em todas as escolas e “meios de difusão de cultura da burguesia”: a quase centenária “recriação” stalinista das supostas “raízes” de um Brasil sem empreendedores, só com usurpadores de um lado e escravos do outro, que repudia a superação, sonha apenas com a “hegemonia” da favela.
Esse “Brasil” dos “intérpretes”, complacente com a derrota – como provou que não o é cada um dos atletas verde-amarelos na Olimpíada disputada na Vila construída pelos empreendedores “que não há” –, é o único representado em Brasília. O que suava nas quadras e pistas em busca de glória e remissão pelo esforço individual não tem quem fale por ele na capital mundial do horror ao mérito, que a Olimpíada honra, porque meritocracia pressupõe a morte do “Sistema” que vive da distribuição e venda de privilégios.
No Brasil Real, onde a casta dos funcionários públicos vence sempre e é contra a lei evitar o suicídio orçamentário, haja o que houver, há sangue na água e os predadores se assanham. Com a inflação comendo por baixo 9% do valor do trabalho ao fim de oito trimestres consecutivos de queda da produção e mais de 100 mil brasileiros da 2.ª Classe se juntando à legião dos desempregados a cada 30 dias, os bancos comem soltos. O volume de crédito concedido caiu 4,4%, mas a “receita com clientes” subiu 4,2%. A cada “renegociação” das dívidas de empreendedores a quem a única garantia dada pelo “governo de salvação nacional” é a de que nada na equação entre contribuintes e “contribuídos” vai mudar senão para pior, aumenta forte o “spread” entre juros pagos e juros cobrados. Os quatro maiores bancos “lucraram” R$ 31,7 bilhões no segundo trimestre, volume de drenagem que se vem somar aos R$ 60 bilhões recém- chupados pela União para garantir que os seus funcionários permaneçam fora da crise que criaram e aos outros R$ 50 bilhões que vão custar a renegociação sem contrapartidas das dívidas dos Estados. Na fila os governos municipais, só 42 dos quais, em quase 6 mil, têm folhas de pagamento menores que a própria arrecadação, apesar do frenesi de multas com que caçam o povo pelas ruas e estradas de todo o País. Jogue-se por cima disso a tempestade de “ações trabalhistas” que o desemprego em massa precipita, montando, este ano, a algo em torno de R$ 70-80 bilhões, e tem-se um retrato parcial do estupro coletivo que o País que trabalha vem sofrendo.
Bolsa subindo, dólar caindo? No mundo da “arbitragem de instituições” é assim: “Tá caro produzir aqui? A lei não garante? Empregar é expor-se à chantagem? Bora produzir em outro lugar”! E na contramão: “Tá fácil ganhar dinheiro no mole? É o juro mais alto do mundo? Vamos lá, enquanto durar!”. Não tem nada que ver com a economia real. O Brasil que produz e cria empregos está sendo morto a chutes.
Nunca tantos foram tão estraçalhados por tão poucos. Como foi que isso se tornou possível?
O “Sistema” produz exatamente o resultado para o qual foi desenhado. Partindo da falsificação constitucionalmente imposta da base de toda a estrutura de representação da sociedade civil a partir dos sindicatos que dispensam simpatizantes porque são sustentados por impostos, o esquema criado por Getúlio Vargas foi clonado, a partir de 1988, pelos partidos políticos. E isso fez da nossa tão propalada “democracia” uma farsa em que os “representantes” se podem dar impunemente o luxo de dispensar o endosso dos “representados” aos seus atos. Fechado em si mesmo, “O Sistema” tem lá os seus mecanismos de processamento de lutas intestinas, mas o respeito à hierarquia interna, uma vez estabelecida, é sagrado sob pena de “morte”, por condenação aberta quando possível, por chantagem e assassinato de personagem quando necessário. Desse momento em diante garantir “o seu” e o “dos seus” à custa dos “de fora”, tão certo quanto que o sol nascerá amanhã, é o que os unirá a todos, para além do falatório, nos momentos de decisão. O conjunto é absolutamente blindado contra qualquer interferência externa, sobretudo dos eleitores, tanto antes, no processo de seleção dos candidatos a cargos eletivos, futuros “hubs” de distribuição de acesso a privilégios, prerrogativa exclusiva dos grandes caciques segundo critérios inconfessáveis, porém explícitos, quanto depois do momento fugaz da eleição.
Esperar que o próprio “Sistema” atue contra si mesmo é, portanto, uma ilusão de noiva. Enquanto a imprensa ou pelo menos uma parte dela resistiu denunciando os avanços da casta que parasita a Nação e amplificando a voz dos que pagam a conta, sobreviveram, aos trancos e barrancos, elementos de democracia nas instituições brasileiras. Depois que a ética corporativa substituiu a ética jornalística e a função institucional da imprensa, último bastião dos desvalidos, cedeu lugar a uma conta de chegar na ordem das prioridades das empresas de comunicação, o caminho ficou livre.
Enquanto a imprensa, a reboque da guerra de “acessos” aos dossiês com que as partes em disputa pelo controle do “Sistema” se alvejam umas às outras, seguir tratando a corrupção como causa, e não como efeito, da sujeição do País à ditadura de uma casta com direitos e deveres totalmente diferenciados dos do resto do povo que ela está dispensada de expor como o que de fato é, as atenções e as energias da Nação abusada seguirão dispersas e erráticas como estão hoje e não haverá meio de pôr um fim à opressão.
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