Autor: Francisco Ferraz
O Estado de S. Paulo -
A
reação de setores da esquerda à visita da jornalista cubana Yoani
Sánchez ao Brasil revelou alguns aspectos da política brasileira atual
que exigem uma análise objetiva e desapaixonada. A julgar pelas reações
hostis a Yoani, impõe-se uma pergunta inevitável: ela significa alguma
ameaça ao Brasil? Que atos terá praticado contra a humanidade para ser
percebida como inimiga no País, mesmo que nunca antes tivesse aqui
pisado? Qual o imenso e assustador poder que essa jornalista tem para
assustar e ameaçar os governantes cubanos, o governo brasileiro, seu
partido e sua base parlamentar?
Yoani
é uma vítima da guerra fria. Ela conseguiu colocar sua insignificante
pessoa na rota dos conflitos entre os grandes. Sua presença, seu
exemplo, seu pensamento constituem uma ameaça real ao regime cubano
porque são vistos como sinais de fraqueza por seus inimigos - internos e
externos.
Mas, e o Muro? O Muro não caiu em 1989? A guerra fria não terminou com a débâcle da Únião Soviética e o fim do comunismo? Não.
É
necessário rever conceitos e algumas "verdades" estabelecidas. Não
podemos confundir o pertencimento geográfico a um mesmo mundo com um
pertencimento decorrente de uma história comum. Na realidade, há um
abismo entre as sociedades do Hemisfério Norte - suas histórias, seus
traumas, suas instituições, suas culturas, sua organização social, seus
problemas e desafios - e as sociedades do Hemisfério Sul.
Vivemos
num mesmo mundo apenas pelo imperativo geográfico, pela instantaneidade
das comunicações e por processos sociais e econômicos de que
participamos principalmente como espectadores e consumidores. Quando se
tratado uso de produtos materiais que, sem dificuldade, incorporamos à
nossa vida, a diferença entre quem os inventou e produz e quem os
consome é de menor importância.
Há,
entretanto, uma grande diferença na importação de produtos culturais,
que resultam da experiência histórica de sociedades diferentes. Os
grandes episódios da História ocidental, como as Revoluções Francesa e
Russa, o nazismo e o comunismo, a 1ª e a 2ª Guerras Mundiais, a guerra
fria e ameaça atômica, a débâcle do comunismo, nós os vivemos
vicariamente, como leitores curiosos ou espectadores distantes, que
podem escolher o que, quanto, quando e como desejam incorporá-los à sua
vida.
Não temos,
nem o Brasil nem a América Latina, nenhum significado existencial do que
seja uma guerra. No Hemisfério Norte as pessoas não somente sabem, como
guardam lembranças familiares amargas de suas consequências.
Não
temos o menor significado existencial do que é uma revolução, tampouco o
que é um regime totalitário como o nazismo e o stalinismo. Temos um
conhecimento livresco, ou romântico, sobre o comunismo. Nada que
equivalha ao conhecimento de russos e europeus que o viveram.
Para
nós, terror é um gênero cinematográfico. Não temos nenhuma ideia do que
é o terror como uma categoria da práxis política ou do que foi o
holocausto como tragédia e pavor.
Essa
a razão por que teorias, ideologias, conceitos, instituições, valores,
interpretações do passado, embora usando-se os mesmos nomes, sofrem uma
violenta refração de significado quando se deslocam do Hemisfério Noite
para o Hemisfério Sul.
Nós
os importamos desidratados. Passamos a usá-los com a leveza e até
inconsequência de quem, não tendo vivido sua realidade, também não
adquiriu a prudência, a lucidez, o senso crítico que só aquele "saber de
experiências feito", de que fala Camões, ensina.
Por
essas razões os muros que caíram de forma tão estrepitosa na Europa,
teimam em não cair aqui... Como não têm significados existenciais para
nós, podem continuar em pé, mesmo quando a realidade que os levantou
alhures já deixou de existir.
Assim
a queda do Muro de Berlim não tem a menor importância para a política
brasileira nem potencial politicamente explorável entre nós, como não
têm importância para a política europeia o futuro de Cuba, a doença de
Hugo Chávez ou as decisões da Unasul.
O
apoio do Brasil ao Irã, apesar da perseguição a gays, mulheres e
cristãos, a proteção estendida a Cesare Battisti, o silêncio em relação
aos prisioneiros políticos em Cuba e o tratamento de inimiga dado a
Yoani são chocantemente contraditórios com a tradição política do PT e
da esquerda brasileira, e com a sua política de direitos humanos.
A
oposição acusa de "incoerência" o PT e a esquerda por essas atitudes
políticas. Aliás, essa é a principal arma em que repousa a esperança da
oposição para abalar o governo do PT e seu projeto político. Essa
acusação, entretanto, não produz nenhum efeito político importante. Não
constrange os acusados da incoerência nem é compreendida pelo eleitor
médio.
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