Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 1 de março de 2013

Yoani, a mais recente batalha da guerra fria

Autor: Francisco Ferraz 
O Estado de S. Paulo - 
A reação de setores da esquerda à visita da jornalista cubana Yoani Sánchez ao Brasil revelou alguns aspectos da política brasileira atual que exigem uma análise objetiva e desapaixonada. A julgar pelas reações hostis a Yoani, impõe-se uma pergunta inevitável: ela significa alguma ameaça ao Brasil? Que atos terá praticado contra a humanidade para ser percebida como inimiga no País, mesmo que nunca antes tivesse aqui pisado? Qual o imenso e assustador poder que essa jornalista tem para assustar e ameaçar os governantes cubanos, o governo brasileiro, seu partido e sua base parlamentar?


Yoani é uma vítima da guerra fria. Ela conseguiu colocar sua insignificante pessoa na rota dos conflitos entre os grandes. Sua presença, seu exemplo, seu pensamento constituem uma ameaça real ao regime cubano porque são vistos como sinais de fraqueza por seus inimigos - internos e externos.
  
Mas, e o Muro? O Muro não caiu em 1989? A guerra fria não terminou com a débâcle da Únião Soviética e o fim do comunismo? Não.
  
É necessário rever conceitos e algumas "verdades" estabelecidas. Não podemos confundir o pertencimento geográfico a um mesmo mundo com um pertencimento decorrente de uma história comum. Na realidade, há um abismo entre as sociedades do Hemisfério Norte - suas histórias, seus traumas, suas instituições, suas culturas, sua organização social, seus problemas e desafios - e as sociedades do Hemisfério Sul.
  
Vivemos num mesmo mundo apenas pelo imperativo geográfico, pela instantaneidade das comunicações e por processos sociais e econômicos de que participamos principalmente como espectadores e consumidores. Quando se tratado uso de produtos materiais que, sem dificuldade, incorporamos à nossa vida, a diferença entre quem os inventou e produz e quem os consome é de menor importância.
  
Há, entretanto, uma grande diferença na importação de produtos culturais, que resultam da experiência histórica de sociedades diferentes. Os grandes episódios da História ocidental, como as Revoluções Francesa e Russa, o nazismo e o comunismo, a 1ª e a 2ª Guerras Mundiais, a guerra fria e ameaça atômica, a débâcle do comunismo, nós os vivemos vicariamente, como leitores curiosos ou espectadores distantes, que podem escolher o que, quanto, quando e como desejam incorporá-los à sua vida.
  
Não temos, nem o Brasil nem a América Latina, nenhum significado existencial do que seja uma guerra. No Hemisfério Norte as pessoas não somente sabem, como guardam lembranças familiares amargas de suas consequências.
  
Não temos o menor significado existencial do que é uma revolução, tampouco o que é um regime totalitário como o nazismo e o stalinismo. Temos um conhecimento livresco, ou romântico, sobre o comunismo. Nada que equivalha ao conhecimento de russos e europeus que o viveram.
  
Para nós, terror é um gênero cinematográfico. Não temos nenhuma ideia do que é o terror como uma categoria da práxis política ou do que foi o holocausto como tragédia e pavor.
  
Essa a razão por que teorias, ideologias, conceitos, instituições, valores, interpretações do passado, embora usando-se os mesmos nomes, sofrem uma violenta refração de significado quando se deslocam do Hemisfério Noite para o Hemisfério Sul.
  
Nós os importamos desidratados. Passamos a usá-los com a leveza e até inconsequência de quem, não tendo vivido sua realidade, também não adquiriu a prudência, a lucidez, o senso crítico que só aquele "saber de experiências feito", de que fala Camões, ensina.

  Fascista é um termo que evoca lembranças marcadas a fogo para um europeu. Para nós não passa de um adjetivo. 

Por essas razões os muros que caíram de forma tão estrepitosa na Europa, teimam em não cair aqui... Como não têm significados existenciais para nós, podem continuar em pé, mesmo quando a realidade que os levantou alhures já deixou de existir.
  
Assim a queda do Muro de Berlim não tem a menor importância para a política brasileira nem potencial politicamente explorável entre nós, como não têm importância para a política europeia o futuro de Cuba, a doença de Hugo Chávez ou as decisões da Unasul.
  
O apoio do Brasil ao Irã, apesar da perseguição a gays, mulheres e cristãos, a proteção estendida a Cesare Battisti, o silêncio em relação aos prisioneiros políticos em Cuba e o tratamento de inimiga dado a Yoani são chocantemente contraditórios com a tradição política do PT e da esquerda brasileira, e com a sua política de direitos humanos.
  
A oposição acusa de "incoerência" o PT e a esquerda por essas atitudes políticas. Aliás, essa é a principal arma em que repousa a esperança da oposição para abalar o governo do PT e seu projeto político. Essa acusação, entretanto, não produz nenhum efeito político importante. Não constrange os acusados da incoerência nem é compreendida pelo eleitor médio.

  Na verdade, para o PT e para a esquerda não há incoerência. O que a oposição chama de incoerência é a necessária subordinação à lógica férrea da guerra fria. Assim a ação política dos historicamente deslocados sobre uma população com baixa informação e avaliação crítica acaba por conferir realidade àquele muro virtual. Por isso Cuba precisa ser protegida. Cuba é o ícone que sobrou, o símbolo que resta. O ícone que a URSS deixou de ser. O muro emblemático da esquerda na América Latina não é o de Berlim. Esse é o muro do Hemisfério Norte. O muro emblemático, cuja queda significaria o fim do comunismo e do socialismo para a América Latina, é Cuba. E por isso que Yoani é perigosa para Cuba, para o bolivarianismo de Chávez, para o PT e seu governo. Na guerra fria do Hemisfério Sul ela é uma peça tão importante quanto eram os literatos e bailarinos russos que fugiam para o Ocidente nas décadas de 50 e 60. Professor de Ciência Política na UFRGS, pós-graduado pela Universidade de Princeton, é diretor-presidente do site Política para políticos (www. politicaparapoliticos.com.br) 

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