por Fernando Henrique Cardoso Folha de São Paulo
As dificuldades políticas pelas quais passamos têm claros efeitos sobre a
conjuntura econômica e vêm se agravando a cada dia. Precisamos
resolvê-las respeitando dois pontos fundamentais: a Constituição e o
bem-estar do povo.
Mormente agora, com 14 milhões de desempregados no país, urge
restabelecer a confiança entre os brasileiros para que o crescimento
econômico seja retomado.
A confiança e a legalidade devem ser nossos marcos. A sociedade
desconfia do Estado, e o povo descrê do poder e dos poderosos. Estes
tiveram a confiabilidade destruída porque a Operação Lava Jato e outros
processos desnudaram os laços entre corrupção e vitórias eleitorais, bem
como mostraram o enriquecimento pessoal de políticos.
Não se deve nem se pode passar uma borracha nos fatos para apagá-los da
memória das pessoas e livrar os responsáveis por eles da devida
penalização.
A Justiça ganha preeminência: há de ser feita sem vinganças, mas também
sem leniência com os interesses políticos. Que se coíbam os excessos
quando os houver, vindos de quem venham –de funcionários, de políticos,
de promotores ou de juízes. Mas não se tolha a Justiça.
Disse reiteradas vezes que o governo de Michel Temer (PMDB) atravessaria uma pinguela, como o de Itamar Franco (1992-1994).
Colaborei ativamente com o governo Itamar, apoiei o atual. Ambos com
pouco tempo para resolver grandes questões pendentes de natureza
diferente: num caso, o desafio central era a inflação; agora é a
retomada do crescimento, que necessita das reformas congressuais.
Nunca neguei os avanços obtidos pela administração Temer no Congresso
Nacional ao aprovar algumas delas, nem deixo de gabar seus méritos nos
avanços em setores econômicos. Não me posiciono, portanto, ao lado dos
que atacam o atual governo para desgastá-lo.
Não obstante, o apoio da sociedade e o consentimento popular ao governo
se diluem em função das questões morais justa ou injustamente levantadas
nas investigações e difundidas pela mídia convencional e social.
É certo que a crítica ao governo envolve todo tipo de interesse. Nela se
juntam a propensão ao escândalo por parte da mídia, a pós-verdade das
redes de internet, os interesses corporativos fortíssimos contra as
reformas e a sanha purificadora de alguns setores do Ministério Público.
Com isso, o dia a dia do governo se tornou difícil. Os governantes
dedicam um esforço enorme para apagar incêndios e ainda precisam
assegurar a maioria congressual, nem sempre conseguida, para aprovar as
medidas necessárias à retomada do crescimento.
Em síntese: o horizonte político está toldado, e o governo, ainda que se
mantenha, terá enorme dificuldade para fazer o necessário em benefício
do povo.
Coloca-se a questão agônica do que fazer.
Diferentemente de outras crises que vivemos, nesta não existe um "lado
de lá" pronto para assumir o governo federal, com um programa apoiado
por grupos de poder na sociedade.
Mais ainda, como o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) declarou que as
eleições de 2014 não mostraram "abusos de poder econômico" (!) [em julgamento encerrado no dia 9 de junho, não há como questionar legalmente o mando presidencial e fazer a sucessão por eleições indiretas.
Ainda que a decisão tivesse sido a oposta, com que legitimidade alguém
governaria tendo seu poder emanado de um Congresso que também está em
causa?
É certo que o STF (Supremo Tribunal Federal) pode decidir contra o
acórdão do TSE, coisa pouco provável. Em qualquer caso, permaneceria a
dúvida sobre a legitimidade, não a legalidade, do sucessor.
Resta no arsenal jurídico e constitucional a eventual demanda do procurador-geral da República pedindo
a suspensão do mandato presidencial por até seis meses [a iniciativa
precisa ser aprovada por dois terços dos deputados] para que se julgue
se houve crime de improbidade ou de obstrução de Justiça.
Seriam meses caóticos até chegar-se à absolvição [pelos ministros do
STF] –caso em que a volta de um presidente alquebrado pouco poderia
fazer para dirigir o país- ou a novas eleições. Só que estas se dariam
no quadro partidário atual, com muitas lideranças judicialmente
questionadas.
Nem assim, portanto, as incertezas diminuiriam –nem tampouco a descrença popular.
O imbróglio é grande.
Neste quadro, o presidente Michel Temer tem a responsabilidade e talvez a
possibilidade de oferecer ao país um caminho mais venturoso, antes que o
atual centro político esteja exaurido, deixando as forças que apoiam as
reformas esmagadas entre dois extremos, à esquerda e à direita.
Bloqueados os meios constitucionais para a mudança de governo e
aumentando a descrença popular, só o presidente tem legitimidade para
reduzir o próprio mandato, propondo, por si ou por seus líderes, uma
proposta de emenda à Constituição que abra espaço para as modificações
em causa.
Qualquer tentativa de emenda para interromper um mandato externa à decisão presidencial soará como um golpe.
Não há como fazer eleições diretas respeitando a Constituição Federal; forçá-las teria enorme custo para a democracia.
Por outro lado, as eleições "Diretas-Já" não resolvem as demais questões
institucionais, tais como a necessária alteração dos prazos para
desincompatibilização [de cargos públicos e eletivos por parte de
possíveis postulantes], eventuais candidaturas avulsas, aprovar a
cláusula de barreira e a proibição de alianças entre partidos nas
eleições proporcionais. Sem falar no debate sobre quem paga os custos da
democracia.
Se o ímpeto de reforma política for grande, por que não envolver nela
uma alteração do mandato presidencial para cinco anos sem reeleição? E,
talvez, discutir a oportunidade de antecipar também as eleições
congressuais. Assim se poderia criar um novo clima político no país.
Apelo, portanto, ao presidente para que medite sobre a oportunidade de
um gesto dessa grandeza, com o qual ganhará a anuência da sociedade para
conduzir a reforma política e presidir as novas eleições.
Quanto tempo se requer para aprovar uma proposta de emenda à Constituição e redefinir as regras político-partidárias? De seis a nove meses, quem sabe?
Abrir-se-ia assim uma vereda de esperança e ainda seria possível que a
história reconhecesse os méritos do autor de uma proposta política de
trégua nacional, sem conchavos, e se evitasse uma derrocada imerecida.
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