por Roberto DaMatta O Globo
É tranquilo falar de regalos e relógios. Relógio, diria um economista,
tem propósitos práticos: serve para marcar o tempo. Já os presentes são
instrumentos de afeto e gratidão.
Encerramos a questão?
Dificilmente...
Se “tempo é dinheiro”, há momentos em que relógios são evitados.
Oscilamos entre situações controladas pelo tempo e situações nas quais o
tempo é controlado. Nas festas os relógios devem ser esquecidos.
O altruísmo — essa marca que desmonta o egoísmo individualista —
confunde os fins e os meios. Ele faz o todo ficar mais importante que a
parte e revela relatividade do tempo. Uma hora com a amada passa em
segundos, e trinta segundos sentado num fogareiro dura uma eternidade!
Há tempos sem preço, e tempos que rendem juros e multas.
Há também ocasiões em que presentes são dados sem simpatia. Chefes de
Estado trocam presentes protocolares, namorados trocam flores, chefetes
de gangues políticas dão, recebem e retribuem joias, relógios, quadros e
festins. Tal como os velhos Potlacht das tribos do noroeste americano,
as expedições Kula dos melanésios, e o nosso carnaval, os fins não estão
em relação e ultrapassam os meios.
Em 1925, um fundador da moderna antropologia, Marcel Mauss, meditou
sobre esse assuntos no seu crucial “Ensaio sobre a dádiva”. O presente, o
dom, o regalo, a lembrança, o agrado, ele diz, seriam elementos
constitutivos da vida coletiva. Tal como a linguagem que se faz trocando
palavras, não há vida social sem trocas. Para Mauss, a troca pressupõe
três momentos: dar, receber e reciprocar — ou seja — dar de volta. Todos
esses movimentos são obrigatórios e formam uma vasta rede que nos
acompanha do nascimento até a morte.
É uma ofensa tanto não aceitar quanto dar em demasia. E — como sabem os
santos, os deuses e os caudilhos — é uma safadeza não devolver aos
doadores as suas dádivas.
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Não é justamente essa ausência de reciprocidade que estamos testemunhando nessa nossa vergonhosa vidinha pública?
Não estamos todos ultrajados por termos dado tanto e recebido tão pouco
em troca? Receber irresponsabilidade pelo nosso trabalho não seria uma
ofensa que vai além das leis? Não é uma abominação descobrir que nossos
impostos foram embolsado e repassados como doações ou presentes não para
nós, o povo, mas para uma súcia da empresários?
A perversão da ética do dar-receber-e-retribuir faz deste cronista não
apenas mais um idiota enganado mas o torna, acima de tudo, um cidadão
acabrunhado de viver numa sociedade cuja elite tem como objetivo
assassinar o cerne da sociabilidade humana. Esse princípio primordial de
justiça que em todo lugar exige dos poderosos e dos ricos um mínimo de
reciprocidade para com os doadores.
Impostos e votos são presentes.
A crise que vivemos não é um simples fato político, é um execrável
incesto. Equivale a lograr a inocência de uma criança. É tão imoral como
roubar as esmolas de um cego.
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Antes de Karl Polanyi, Mauss vislumbrou o desafio que uma ética
individualista iria erigir às instituições que estudou — trocas
institucionalizadas (como as do nosso Natal) e encorpadas em valores que
existiam nas chamadas “sociedades primitivas”, mas cujos ecos
permanecem em instituições como o juro, a caução, confiança, a
previdência social e o cuidado pelo coletivo.
A ausência de reciprocidade leva a desequilíbrios e a uma impensável
ameaça: a do esgotamento do planeta pelo seu uso como uma entidade sem
alma. Mauss assevera: “A liberalidade é obrigatória, porque Nêmeses
(deusa da equidade) vinga os pobres e os deuses pelo excesso de
felicidade e riqueza de alguns homens que devem desfazer-se delas: é a
velha moral da dádiva transformada em princípio de justiça; e os deuses e
os espíritos consentem que as porções que lhes dão e que são destruídas
em sacrifícios inúteis sirvam aos pobres e às crianças”.
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E o relógio?
Eis o que ouvi:
Um xamã da tribo dos Other Brecht, conhecidos encenadores de histórias
do povo ao contrário, presenteou um Chefe-cantador com um relógio de
luxo. Envergonhado, ele jamais usou a joia. Pelas leis das trocas,
porém, ele não poderia devolvê-la ou revelar o motivo da doação. O
regalo foi escondido até ser descoberto pela bruxaria do clã
Republicano. Foi quando ele percebeu que os presentes têm um espírito
que liga doadores e recebedores. Seu caro relógio-regalo denunciou-o.
Afinal, todo presente excessivo vira veneno.
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