O ano de 2020 ainda
está relativamente longe, mas, para muitos, seus efeitos bem que
poderiam já estar sendo aproveitados por aí. É neste ano que, segundo
estimativas otimistas, o Brasil terá voltado a ter a mesma renda média
de 2010, recuperando-se oficialmente da crise. Para outro país
sul-americano, porém, a situação é totalmente distinta. É no mesmo ano de 2020 que o Chile atingirá a renda média de um país desenvolvido.
Fazer
parte do clube dos países ricos não é apenas uma questão de renda, no
entanto. É preciso apresentar certos padrões de desenvolvimento, como
expectativa de vida elevada, alto nível educacional e outros critérios
já muito conhecidos. E é justamente neste aspecto que o pequeno país
sul-americano surpreende. Ao contrário de países que enriqueceram
rapidamente ao descobrir riquezas como petróleo, o Chile construiu seu
desenvolvimento ao longo de décadas e o fundamentou naquilo que
realmente distingue as nações desenvolvidas: instituições sólidas.
Ainda que
apresente boa parte das características esperadas em um país rico – ou
em processo de enriquecimento -, certos aspectos, históricos ou
culturais, ainda tornam o caso chileno, se não único, ao menos bastante
raro. Trata-se de uma ex-colônia de exploração, dominada por séculos
pelos regimes impostos pela coroa espanhola. Um país que enfrentou o
subdesenvolvimento desde a sua independência, conheceu líderes
caudilhistas e populistas, como qualquer outro país latino-americano,
viu crises de confiança destruírem sua moeda inúmeras vezes no último
século e passou por uma das mais cruéis ditaduras do continente.
Como
explicar então que, mesmo tendo todo esse histórico em comum com países
vizinhos como Argentina, Uruguai, Colômbia ou mesmo o Brasil, o país
consiga se destacar e apresentar resultados sólidos e constantes? Para o
Chile, a resposta pode estar justamente em ter conseguido superar unido
a ditadura de Pinochet, sem com isso ter se rendido ao populismo dos
novos líderes recém-eleitos.
Pode
parecer óbvio, mas com a decisão de manter o que vinha funcionando – a
economia – e livrar-se daquilo que estava errado – a política ditatorial
– os chilenos superaram de maneira muito menos traumática a mudança de
regime, conseguindo embarcar em um crescimento econômico pouco visto até
então. Nos dez primeiros anos que se seguiram ao fim do período
Pinochet, por exemplo, o pib per capita cresceu nada menos que três
vezes, enquanto o pib nominal – a soma de toda a riqueza produzida pelo
país – cresceu cinco vezes em dólar.
Assim como
Brasil e Argentina, a economia chilena também se beneficia com o
aumento do preço de minérios ou produtos agrícolas e de um setor de
serviços bastante diversificado. Ao contrário dos dois, porém, uma queda
internacional no preço destes bens (que são boa parte daquilo que estes
países exportam) não é suficiente para causar uma recessão profunda.
Não há crise, nem a volta da inflação. O que então explica toda esta
estabilidade? Abaixo contamos um pouco do que torna o caso chileno um
exemplo a ser estudado com calma e bem digerido.
1. No chile, a previdência é um fator gerador de riqueza e não um custo.
Uma das
mais debatidas reformas adotadas ainda durante os anos da ditadura, o
sistema de pensões chileno, gerido por meio de fundos privados, é um dos
melhores meios para entender as mudanças que ocorreram nas últimas
décadas.
Ao
contrário da previdência brasileira, regida por um sistema de
redistribuição, onde quem está entrando no sistema banca quem já está
aposentado, o sistema chileno é conhecido pelas suas contas individuais,
onde cada pessoa é responsável por gerar os recursos que irão bancá-la
no futuro.
Os
recursos acumulados, por sua vez, são geridos de forma a garantir o
melhor retorno possível, algo que vem tendo relativamente sucesso, uma
vez que o retorno médio dos ativos tem estado em 8% ao ano, bem acima dos 6% necessários para garantir a questão atuarial.
Desta
forma, os aposentados chilenos são, na realidade, detentores de boa
parte da poupança do país. Estradas, portos, aeroportos, empresas de
serviços ou grandes indústrias, tudo isto compõe os ativos dos fundos de
aposentadoria e seu retorno financia as pensões, em um sistema que se
retroalimenta.
Ao
governo, cabe bancar uma aposentadoria base a todos aqueles que não
conseguirem ao longo da vida acumular recursos suficientes.
Na média, os aposentados chilenos que se aposentaram no último ano receberam US$ 400.
Apesar de
bem sucedido em expandir a poupança do país e contribuir para o
crescimento da economia – além de juros menores (segundo estimativas,
cerca de 18% da diferença de juros entre o Brasil e o Chile se deve
apenas pela diferença nos sistemas) -, ainda existem críticas.
Diferentemente
do Brasil – onde empregados pagam 8%, que se somam aos 20% de
contribuição das empresas e 8% de FGTS (36% portanto) -, no Chile a
contribuição é de 12,5% e limita-se ao empregado. Para os críticos, a
principal proposta de mudança é que as empresas passem a contribuir com
parte do valor, ampliando o retorno que as aposentadorias possam ter no
futuro. Atualmente, os aposentados chilenos são detentores de US$ 162 bilhões em ativos, equivalente a 55% do PIB do país.
2. Governos que assumem não acabam com todo programa ou política do governo anterior.
Poucas
práticas têm sido tão reveladoras da capacidade de um país se sobressair
do que a forma como seus políticos atuam para distinguir os chamados
programas de Estado dos programas de governo.
Programas
de Estado, em geral, são aqueles cuja alteração é desnecessária,
enquanto programas de governo são justamente aqueles pelos quais um
governo é eleito. O toque pessoal, mais à direita ou à esquerda, é o que
diferencia os governos eleitos no Chile. Nada disso, porém, altera o
núcleo central das instituições do país.
O caráter
pró-mercado é marcante mesmo quando governos socialistas como o de
Michelle Bachelet assumem. Não cabe a Bachelet, por exemplo, revogar a
política de zerar impostos de
importação firmada por seu antecessor, Sebastian Piñera, junto ao grupo
de países que compõem a chamada Aliança do Pacífico, um bloco similar
ao Mercosul.
Esta
característica, presente desde a transição entre a ditadura de Pinochet e
os governos democráticos, mantém-se firme até os dias atuais. Ainda que
Bachelet pretenda reformar o sistema de pensões chileno, por exemplo,
incluindo uma contribuição por parte das empresas, o risco de que a
presidente socialista do Chile faça o que fez Cristina Kirchner (que
extinguiu o sistema de previdência privada na Argentina e confiscou os
recursos dos fundos de pensão para serem geridos pelo Estado) é mínimo.
A
manutenção de determinadas políticas também pode ser considerada um dos
pilares daquilo que foi o primeiro governo Lula. O tripé macroeconômico,
implementado em 1999 (controle da inflação, câmbio flutuante e
superávit primário) manteve-se ativo por anos. Ao contrário dos
discursos de Lula, porém, termos como herança maldita e a constante
negação de governos anteriores não possuem espaço no debate político
chileno.
3. Não há idolatria a políticos.
Ter
sobrevivido a uma das ditaduras mais sangrentas da América do Sul foi
uma experiência muito traumática. O que em muitos casos seria uma
explicação para a manutenção de governos extremamente populistas, com
presidentes obcecados por distinguir-se do caráter autoritário ao
conceder direitos diversos à população, acabou servindo de base para
inspirar o país a superar um problema tipicamente latino-americano: a
idolatria de políticos.
Muito
antes de Donald Trump, João Dória ou qualquer outro forasteiro chegar ao
poder, os chilenos colocaram Sebastian Piñera no poder, empresário e
homem mais rico do país, com um claro intuito de criar um governo
técnico e voltado para o comércio e a economia.
Mesmo
Bachelet, que está em seu segundo mandato (enfrentando níveis bastante
elevados de rejeição), ainda tem de encarar o ceticismo político que
guia o eleitor chileno.
Tal
ceticismo pode ser materializado em uma política clara: não há reeleição
no Chile. Apesar de tratar-se de uma herança histórica, uma vez que a
primeira constituição do país também vedava a reeleição, a experiência
com a ditadura foi o que terminou por levar o país a uma série de
governos mais curtos e reduzir o poder do chefe de Estado e de governo, o
presidente da república.
Durante a
reforma de 1994, o mandato que anteriormente era de 8 anos, como
governou Pinochet em seu segundo período (1981-1989), passou para 6
anos, sendo finalmente alterado para 4 anos sem reeleição imediata na
reforma de 2005.
4. A educação mais bem posicionada da América Latina no ranking do PISA.
A ideia de
que a educação é parte importante no processo de desenvolvimento de um
país é, ao contrário do que poderia pensar o senso comum, uma idéia
relativamente nova. Em 1974, Jacob Mincer, um economista da Universidade
de Chicago, decidiu analisar dados recolhidos ao longo das duas décadas
anteriores para medir algo até então desconhecido: qual o impacto da
educação na renda da população? O que veio a seguir foi o
desenvolvimento de um campo de estudo completamente novo, conhecido como
teoria do capital humano, ou economia do trabalho.
Muito além
de uma teoria, inúmeros países vivenciaram na prática o poder
transformador da educação e este é também o caso do Chile. Atualmente,
cerca de 90% dos alunos chilenos estudam por meio de um sistema de vouchers, também criado na mesma universidade de Chicago e incentivado pelo governo chileno desde sua implementação em 1981.
Por meio deste sistema, uma família pode escolher colocar seu filho em qualquer escola particular do país, contando com um cheque por parte do governo para bancar a mensalidade, assim como pode optar pela escola pública.
Por meio deste sistema, uma família pode escolher colocar seu filho em qualquer escola particular do país, contando com um cheque por parte do governo para bancar a mensalidade, assim como pode optar pela escola pública.
Dono da melhor universidade da
América Latina, a Universidade Católica do Chile (posição que é
alternada com a USP), além de 4 entre as 20 melhores (o mesmo número do
Brasil, com uma população dez vezes menor que a nossa), o país também
ostenta, segundo o PISA – o programa internacional de avaliação de
estudantes -, os melhores índices da região em todas as áreas de conhecimento avaliadas: ciências, leitura e matemática.
5. A dívida do governo é quase nula e o orçamento é equilibrado.
O viés
conciliatório chileno pode ser compreendido perfeitamente na maneira
como o próprio governo é gerido. Ainda durante os anos 80, o país viu
uma série de políticas econômicas e sociais serem implementadas por
economistas de viés liberal, oriundos da Universidade de Chicago, ao
mesmo tempo em que tinha como Ministro da Economia um economista
keynesiano, Hermán Buchi.
A idéia
central de Buchi era que o governo deveria ser austero em momentos de
crescimento acelerado, para gastar em momentos de crise. A despeito de
suas políticas não terem sido seguidas à risca, elas acabaram por dar o
tom daquilo que definiria a linha de ação do governo chileno quanto ao
seu orçamento. Durante décadas, o orçamento chileno foi gerido de
maneira equilibrada, sem ocasionar déficits e sem excesso de gastos. O
resultado prático disso é que a dívida do governo está em 16,5% do PIB, contra 70,1% da brasileira.
Apesar do
crescimento recente (que coincide com um período de queda na arrecadação
ocasionado pela queda no preço do cobre, principal receita do governo),
a dívida do país costuma oscilar abaixo dos 10%.
Desde a
implementação da política de controle no orçamento público, em 1985, a
dívida chilena caiu de 32% do PIB para 5,2% em 2005 (tendo subido nos
anos seguintes por questões que vão do aumento de gastos promovido por
Bachelet à queda na arrecadação).
Ainda assim, a experiência chilena demonstra de forma clara o impacto de um orçamento federal equilibrado. Os juros no país estão em 3,5% ao ano, contra 14% no Brasil. Isto após terem chegado a 0,5% no ano de 2010.
6. Abrir uma empresa no Chile demora 11 minutos, contra 119 dias no Brasil.
Manter o
crescimento econômico elevado tem sido um desafio constante para os
sucessivos governos chilenos. Desde 2009, o país lidera um esforço de
desburocratização que, até aqui, foi responsável por reduzir o prazo de
abertura de uma empresa de 29 dias para os atuais 11 minutos.
No
esforço, liderado ainda no governo Sebastian Piñera, o meio digital tem
sido amplamente utilizado, especialmente para as de pequeno porte.
Ao
contrário do Brasil, onde a legislação e a burocracia existentes para
regular novos negócios somaria um livro com 112 milhões de páginas, o
caso chileno se resume a algumas poucas páginas que regulam de forma
ampla os serviços no país. Não há necessidade de lidar com burocratas e
uma junta comercial. Para abrir uma empresa, basta conseguir um
documento conhecido como FEA, Firma Electronica Avanzada, que pode ser
obtido virtualmente, e com ele em mãos, atualizar você mesmo os dados da
sua empresa no site da Receita Federal do país.
O
resultado prático destas medidas tem sido a criação de novos empregos em
pequenas e médias empresas. Para o governo, a medida é duplamente
positiva, uma vez que a renda média dos trabalhadores de pequenas
empresas cresce de forma mais acelerada do que nas grandes empresas,
7,1% contra 5,7% ao ano, respectivamente.
7. É um dos países com maior liberdade de imprensa e menor percepção de corrupção do continente.
Sobrevivendo
em um continente acostumado a golpes e ditaduras que suprimem as
liberdades humanas mais básicas, como a de expressão e a econômica, o
Chile acaba por se destacar positivamente neste aspecto. Desde que saiu
da sua ditadura militar em 1990, o país tem elevado gradativamente seu
grau de liberdade nos campos mais diversos.
Ao
contrário de vizinhos como a Venezuela, onde jornais são fechados e
proibidos de divulgar conteúdo sobre o governo, ou a Argentina, onde a
principal empresa de comunicação do país é tratada como inimiga pela
ex-presidente Cristina Kirchner, os meios de comunicação chilenos
usufruem de uma liberdade pouco vista mundo afora.
No Chile, a
liberdade de imprensa supera a de países como Reino Unido ou Estados
Unidos. O país é o 31º colocado, segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras. Na prática, ter uma imprensa livre é parte fundamental do sucesso de outra medida importante: o combate à corrupção.
Apesar de
ainda existirem alguns casos – como o escândalo que envolve o filho da
presidente Michelle Bachelet, acusado de ter lucrado milhões por meio de
uma negociação imobiliária envolvendo um banco próximo ao governo -, a
política chilena segue sem grandes sobressaltos desde a
redemocratização. Da reeleição proibida ao tamanho limitado do governo,
as causas que impedem a implementação de uma quadrilha no governo são
inúmeras.
8. É o único país da América Latina onde a expectativa de vida supera os 80 anos. E o que mais investe em saúde.
Não é
apenas de bons indicadores econômicos, liberdade de imprensa, liberdade
sexual e educação que vive o Chile. O país se destaca também em um
aspecto considerado fundamental por 11 em cada dez brasileiros: a saúde.
Nenhum
país latino-americano possui uma expectativa de vida ao nascer tão alta
quanto a chilena. O país é o 28º em um ranking com 183 países, e está
0,1 ano abaixo da Dinamarca – acima de Cuba ou Estados Unidos, portanto.
Junto da Argentina, o Chile apresenta também o maior IDH (Índice de
Desenvolvimento Humano), com a diferença de que se destaca especialmente
em saúde e educação, enquanto a Argentina ganha pontos no quesito
renda.
Quando o assunto é investimento em saúde, poucos países investem tanto: são US$ 1.749,00 anuais
por habitante, ou 30% mais que o Brasil, com aproximadamente metade do
valor investido vindo das famílias (51%) e o restante do governo.
9. Nos últimos 15 anos o Chile fechou 62 acordos de livre comércio, contra três do Brasil (com Egito, Palestina e Israel).
Em uma era
onde grandes blocos de comércio internacional tomaram o espaço na
agenda comercial da maior parte dos países, a opção adotada pelo Chile
acaba ajudando a entender parte do seu sucesso na área.
Imagine
que você tenha que negociar um acordo comercial. Seria mais fácil
fazê-lo de modo a encaixar os interesses de dois blocos, como Mercosul e
União Europeia, que reúnem mais de três dezenas de países, ou negociar
com um único país apenas? Esta foi, em essência, a filosofia que levou o
Chile a apostar em acordos bilaterais. Nos últimos 15 anos, foram 62
deles, incluindo um firmado em 2003 com os Estados Unidos, que eliminou
nada menos que 95% dos impostos de importação entre os dois países.
Nos dez
anos que se seguiram ao acordo entre ambos, as exportações e importações
cresceram 141%, com destaque para as exportações chilenas, que tiveram
um salto de 248%. Acordo similar foi firmado entre o Chile e a própria
União Europeia, com quem o Brasil sonha fazer parceria há anos, mas
acaba impedido por estar preso ao Mercosul.
Na mesma
linha, os países latino-americanos não ligados ao Mercosul criaram um
acordo similar, dando origem à Aliança do Pacífico, que não impede que
os países firmem acordos bilaterais.
Com uma
economia dez vezes menor que a brasileira, o Chile importa e exporta
nada menos que 40% do valor negociado anualmente pelo Brasil. Em
números, são US$ 150 bilhões por parte dos chilenos (ou 60% do seu PIB)
contra US$ 370 bilhões em importações e exportações brasileiras (ou 16%
do PIB).
10. É o país com maior cobertura de saneamento básico da América Latina.
Lidar com a
questão do saneamento tem sido um dos maiores dilemas brasileiros nas
últimas décadas. Segundo a sabedoria popular, esse tipo de obra não sai
porque são feitas embaixo da terra, enquanto os chafarizes são
inaugurados e geram visibilidade ao prefeito. Na prática, o grande
problema até aqui tem sido a falta de definições claras sobre quem de
fato é responsável pelo saneamento no Brasil. As incertezas jurídicas no
setor ainda são imensas.
Nem mesmo
um estudo do IPEA, que demonstra que a cada R$ 1 investido em saneamento
são economizados R$ 4 em saúde, motiva os governos brasileiros a
agirem. Por aqui, saneamento é uma concessão do município, gerido via de
regra por uma empresa do governo do estado e financiada pela União. No
caminho entre a liberação da verba e as obras, a burocracia.
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