Kim Kataguiri: Folha de São Paulo
O debate sobre a reforma da Previdência mal começou, mas as mentiras e a
desinformação já começaram a se espalhar. "Querem dar o dinheiro dos
aposentados pros banqueiros!", "Vão roubar todo o dinheiro extra" ou
"Vão jogar a conta da corrupção nas costas da população" são frases que
têm grande apelo.
Elas vêm sendo repetidas tanto pela esquerda como pela direita, mas não têm nenhum embasamento na verdade.
Vamos aos fatos: existe um rombo de cerca de R$ 150 bilhões no nosso
sistema previdenciário. Isso significa que precisamos reformá-lo. Não é
questão de opinião. São os números que dizem. O sistema a ser adotado
não precisa ser liberal, conservador, socialista ou o que quer que seja.
Ele precisa ser sustentável.
Para discutir uma mudança, precisamos entender por que o modelo atual é
inviável. Hoje, o sistema previdenciário é uma espécie de esquema de
pirâmide. O trabalhador contribui a vida inteira pensando estar
garantindo a sua aposentadoria, quando, na verdade, todo o seu dinheiro
está sendo usado para pagar a aposentadoria da geração anterior.
O problema é que a taxa de natalidade está diminuindo e a expectativa de
vida está aumentando, o que significa que mais pessoas dependerão da
Previdência, e menos pessoas trabalharão para pagá-la. Segundo o
economista Marcelo Caetano,
se nada for feito, em 15 anos, o governo não terá dinheiro para pagar
as aposentadorias. Parece profecia do Apocalipse, mas é matemática.
Na prática, a única garantia que o trabalhador tem de que vai se
aposentar é a legal, mas ainda não descobriram uma maneira de fazer as
leis produzirem dinheiro.
Como o sistema não se sustenta, ele precisa de mais dinheiro. Esse
dinheiro vem dos impostos. Como os impostos sobre consumo são
pesadíssimos, quem mais paga imposto proporcionalmente são os mais
pobres, que gastam uma parcela maior de seus salários com produtos
essenciais, como comida, por exemplo. Ou seja, o atual sistema promove a
desigualdade social: milhões de trabalhadores sustentam a aposentadoria
luxuosa da nobreza do funcionalismo público. Trata-se de um estelionato
de dar inveja ao próprio Charles Ponzi.
Só para ter uma ideia, em 1997, os gastos com a Previdência
representavam 0,3% do PIB. Em 2017, a projeção é que cheguem a 2,7%, com
um rombo de mais de R$180 bilhões no INSS.
Essa falta de sustentabilidade ainda faz com que o sistema seja
inconstitucional. O artigo 201 da Carta determina que a previdência deve
observar "critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial".
Apesar disso, é claro que o STF nunca declararia a
inconstitucionalidade de um sistema cujo topo é ocupado pela elite do
Judiciário.
"Ah, mas daria para pagar tudo se os políticos não roubassem tanto". O
triste é que não haveria dinheiro suficiente nem se todos os políticos
se tornassem santos da noite para o dia. O prejuízo causado pelo
petrolão, por exemplo, não chega nem perto do déficit do INSS. Aliás, se
vendêssemos a Petrobras inteira —cujo valor de mercado é de cerca de R$
200 bilhões—, o dinheiro só daria para pagar um ano do rombo
previdenciário.
"São os ricos que devem pagar a conta! É só taxar as grandes fortunas!".
Esse é um dos "argumentos" mais recorrentes daqueles que criticam o "1%
mais rico" sem se dar conta de que eles garantem boa parte dos empregos
dos outros "99%".
De quanto seria esse imposto? 5%? 10%? 20%? Por que não 100%? Por que
não confiscamos tudo dos porcos capitalistas do mercado financeiro e
pagamos o rombo da previdência?
Somando-se o valor de mercado de todas as empresas negociadas na Bolsa,
chegamos em R$ 2,3 trilhões —arredondando para cima. Isso seria
suficiente para pagar quase 10 anos de rombo. E depois desse período, o
que faríamos? Confiscaríamos as propriedades dos pobres? Pois é.
"O rombo da Previdência é uma mentira! Todo o nosso dinheiro vai para a
dívida, para o bolso dos banqueiros!". Nenhum centavo do INSS vai para a
dívida. "Mas boa parte do que é arrecadado de outras maneiras vai",
poderiam responder. É verdade. Poderíamos, então, dar um calote na
dívida —que hoje gira em torno de R$ 3,3 trilhões— para pagar cerca de
15 anos de rombo previdenciário. E depois?
Imprimimos mais dinheiro, gerando inflação e corroendo o poder de compra
dos mais pobres? Aumentamos os impostos, fazendo os preços aumentarem e
os empregos sumirem? Pegamos dinheiro emprestado? Talvez consigamos
negociar uns juros bacanas, afinal, não há risco em emprestar dinheiro
para caloteiros.
Somando as soluções dos adeptos desse tipo de discurso populista,
conseguiríamos não só quebrar a Previdência, mas fazer com que a
população racionasse papel higiênico, traficasse frango e tentasse fugir
para países vizinhos.
Essa história parece familiar, não?
Qual é a solução, então? Parte dela está na proposta feita pelo governo:
a idade mínima para os servidores públicos e para a iniciativa privada
passa a ser 65 anos, com a exigência de 25 anos de contribuição, tanto
para homens como para mulheres, o que está em sintonia com os modelos
mais sustentáveis do mundo.
O problema do projeto é que ele não acaba com a pirâmide, só reduz o
ganho de quem está no topo e aumenta o tempo de contribuição de quem
está na base, ou seja, garante um fôlego, mas não resolve
definitivamente a questão.
O sistema mais elogiado por especialistas de todo o mundo é o de
capitalização, em que o dinheiro da contribuição é investido, e, ao se
aposentar, o trabalhador é pago não só com o que contribuiu, mas também
com os rendimentos daqueles investimentos ao longo dos anos. É um
sistema baseado em poupança, diferente do nosso que se baseia em dívida.
Hoje, tiramos dinheiro de outras áreas para pagar a impagável dívida da
Previdência. No sistema de capitalização, que coloca mais dinheiro à
disposição do mercado, os juros ficam menores, consequentemente
aumentando os empréstimos, os investimentos e, assim, gerando emprego,
infraestrutura e desenvolvendo o país.
Em suma, precisamos, sim, de uma reforma no nosso sistema previdenciário.
Quem quer que afirme o contrário ou está defendendo interesses corporativos ou sofre de cegueira ideológica.
Temos uma oportunidade única para corrigir um problema que há décadas
atrasa o desenvolvimento do nosso país e tem potencial para atrasar
ainda mais.
Ouço desde sempre que o Brasil é o país do futuro. Não sei se vou viver
esse futuro. O que sei é que, se continuarmos aplicando soluções
paliativas para problemas estruturais, esse futuro nunca vai chegar.
*Agradeço ao professor Stephen Kanitz, administrador que estuda e
escreve sobre o sistema previdenciário há mais de 40 anos, por despertar
meu interesse e tirar minhas dúvidas sobre o assunto.
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