Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Pinga da mesma pipa

Publicado na versão impressa de VEJA  J. R. GUZZO

O deputado Eduardo Cunha, pelo que estabelecem as leis da balística, foi a pique. O casco continua acima da água, mesmo porque navios da classe “Cunha” custam a afundar, mas acertaram o homem a meia-nau com um míssil de última geração, desses com ogiva capaz de socar 1 000 quilos de TNT no lombo do alvo, e tiros assim causam naufrágio ─ imediato ou em câmera lenta. Essas coisas têm de ser ditas com cuidado, claro, porque estamos no Brasil, e no bioma político brasileiro já foi observada diversas vezes a existência de uma espécie de indivíduo que não obedece às determinações da ciência: trata-se, como todo mundo sabe, de gente que deveria estar morta para a vida pública, mas continua viva.
Fernando Collor foi deposto da Presidência da República em 1992, nada menos que isso, e hoje é um dos marechais de campo das forças a serviço do governo e do PT no Congresso Nacional. Renan Calheiros teve de renunciar à presidência do Senado em 2007, quando se descobriu que uma empreiteira de obras públicas pagava o sustento de uma filha que teve fora do casamento; no momento, de volta ao lugar em que estava, é considerado o campeão da presidente Dilma Rousseff na campanha contra o impeachment.
O deputado Paulo Maluf vive praticamente desde o início de sua carreira política numa situação equivalente à de Eduardo Cunha; nos últimos cinco anos, por sinal, tem contra si um mandado de captura da Interpol e poderá ser preso em 180 países se pisar fora do Brasil. Aqui dentro continua em plena forma: ainda em 2012 o ex-presidente Lula foi à sua casa em São Paulo para homenageá-lo com um beija-mão público. Jader Barbalho também precisou renunciar ao mandato de senador, em 2001, para não ser cassado por corrupção; hoje está de novo no Senado, e tem direito a ser pai de ministro no governo Dilma.
O presidente da Câmara dos Deputados seria feito do mesmo material? O que se tem de certo, hoje, é o encerramento de um dos períodos mais esquisitos da vida política deste país: os oito meses em que Cunha, desde sua eleição para o cargo, foi o líder real da oposição brasileira, apesar de pertencer ao maior partido da aliança pró-governo. A conversa, agora, é até onde irão as desventuras de Eduardo Cunha ─ ou, mais exatamente, que efeito concreto elas podem ter no impeachment da presidente Dilma Rousseff, cuja sorte depende diretamente do Congresso e de quem, ali dentro, comanda blocos de voto no plenário.
O presidente da Câmara, que até outro dia era a principal ameaça à sobrevivência de Dilma, sabe que nada deve ser resolvido amanhã ou depois; juntar votos suficientes para derrubá-lo é tão difícil quanto reunir votos para depor Dilma. “Vão ter de me aturar mais um pouquinho”, já avisou o deputado. Na verdade, o cidadão brasileiro vai ter de aturar os dois ao mesmo tempo, e enquanto isso os que mandam no país tentarão montar uma gambiarra qualquer para atender a ambos. Da parte de Cunha, todo mundo pode estar certo de que a decisão essencial já está tomada: ele vai fazer exatamente o que achar que mais lhe interessa. “Não estamos em trégua nem em guerra”, anunciou o deputado.
Ou seja, aqui não há nenhuma questão de princípio a ser decidida, a começar pelo interesse público; a única coisa que conta é definir o preço que cada um terá de pagar para que todos se arranjem. Tudo pode dar errado para Cunha, para o governo ou para os dois, claro, pois essas coisas não funcionam como uma combinação de seno, cosseno e hipotenusa; são apenas vida real, e a vida real, como se sabe, tem a mania de deixar no sereno autores de artigos sobre política, ou uma infinidade de outros assuntos. Mas o que chama imensamente a atenção, neste caso, é como Cunha e o seu sistema, de um lado, e a trindade Lula-Dilma-PT, de outro, são iguais ─ feitos um para o outro, na verdade, e portanto em perfeitas condições de se entenderem.
São pinga da mesma pipa, como se vê pela lista de personagens citados acima, todos promovidos de Belzebu a Arcanjo Gabriel um minuto depois de fecharem negócio com o PT. Em relação a Cunha, especialmente, é uma piada a recusa do PT em dizer a palavra “corrupção” ─ o partido e o seu líder supremo se consideram proibidos de tocar no tema, pois sabem quanto as denúncias contra o deputado são idênticas, há anos, às que não conseguem responder. E a Petrobras, enfim? Nada os une tanto quanto a vontade de manter a empresa como propriedade estatal. É claro: se não for a sagrada Petrobras, quem vai pagar as aulas de tênis da sra. Cunha ─ e as contas de toda a companheirada?








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