Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Moeda e dominância fiscal -

GUSTAVO FRANCO ESTADÃO

Um dia desses estive na difícil posição de palestrar para um grupo de vestibulandos sobre um tema que não aparece com seu próprio nome nas provas do Enem, e mesmo da PUC, mas está em toda parte: a inflação.

Recomendo fortemente ao leitor a tentativa de explicar um tema complexo, da sua especialização, a adolescentes repletos de hormônios e tensão pré-vestibular: não há teste mais rigoroso sobre as suas convicções. Recomendo também o amplo recurso às perguntas retóricas, e logo no início, uma receita ótima para quem prefere aprender por si mesmo.

A inflação é: (a) um aumento generalizado nos preços; ou (b) a perda do poder de compra da moeda?

Se você escolheu a opção (a), está diante de um fenômeno social complexo, pois é preciso pensar como é que o padeiro se comunica com o barbeiro e com os produtores de tomates, pepinos, aço e computadores, e também com as companhias aéreas e restaurantes, para todos aumentarem seus preços mais ou menos na mesma velocidade.

Talvez eles leiam os mesmos jornais, de onde aprendem sobre os andamentos da moeda e do crédito público, pois afinal, se existe uma única coisa a unir esses personagens da vida produtiva brasileira, é que todos querem moeda em troca de seus bens e serviços. A moeda é a “cafetina universal”, para usar uma expressão de Shakespeare, que Marx gostava muito de repetir.

É claro que isso nos leva à opção (b): é claro que a inflação também é a perda de poder aquisitivo da moeda, as duas alternativas estão corretas, um velho truque docente, muito usado nos vestibulares.

O alívio veio de ninguém perguntar o que exatamente é a moeda, pois, com os empregos que tive, jamais poderia hesitar nessa resposta. Na faculdade, e mais para o fim, os alunos compreendem e admiram os professores que compartilham suas dúvidas e inquietações. Não é o que se observa no ensino médio, onde as certezas são absolutas e as provas, de múltipla escolha.

Seria chocante se dissesse aos meninos que o papel-moeda é uma tecnologia de pagamento que tende ao desuso, ao menos desde os anos 80, e que os contadores dos bancos centrais desse planeta não sabem ao certo se a moeda emitida nessas instituições tem a natureza de uma dívida.

Nos cruzeiros de 1942 estava inscrito nas cédulas que “se pagará ao portador desta a quantia de ...”, e vinha escrito o valor da cédula. Uma promessa pagável com o próprio instrumento, uma estranha redundância. A inscrição depois foi substituída por “valor legal” e, anos mais tarde, por razões hoje compreensíveis (talvez um desabafo), os dizeres passaram a ser “Deus seja louvado!”

Veja no balanço do Banco Central a conta “meio circulante”, que diz respeito ao papel-moeda em circulação: o saldo é R$ 196 bilhões para setembro/2015, tratando-se claramente de um passivo não exigível, embora não pertença ao patrimônio líquido. Veja, agora, a estatística para a “Dívida Líquida do Setor Público” e seus componentes. Lá está a “base monetária”, dentro da qual está o “meio circulante”.

Bem, o papel-moeda não é bem dívida do Estado, e esta, por sua vez, quando encarnada em títulos da dívida pública, ou dívida mobiliária, parece moeda, daí se falar em “quase moeda” pois, afinal, é muito líquida e é com ela que o Estado paga suas contas.

Não seria razoável pensar a moeda e títulos da dívida pública como uma coisa só, apenas expressões diferenciadas do “crédito público”, um atributo intangível que pulsa conforme a qualidade do governo?

Acho muito apropriado definir o meio circulante como uma espécie de ação preferencial ao portador, emitida pelo Estado, em pequenas denominações e que o Banco Central distribui pela rede bancária em troca de papel- moeda velho e, às vezes, em troca de outros tipos de dívida do Estado.

Outra maneira de ver é tomar a moeda como dívida, mas na forma de um instrumento perpétuo e sem juros. Visto assim, é fácil ver que o Estado preferirá sempre se financiar com esse tipo de obrigação. Porém, a sociedade necessita muito pouco desse instrumento e cada vez menos. A ideia de “rodar a guitarra” e abusar da emissão desses papéis, ou de moedas metálicas, está cada vez mais obsoleta, pois a demanda é muito limitada. A guitarra do século 21 é a dívida.

Aqui no Brasil, desde 2011 o TCU obriga o Banco Central a divulgar o tamanho de suas receitas decorrentes do poder de emitir moeda. Foram R$ 12,7 bilhões em 2014, equivalentes a 0,23% do PIB, já deduzidos os custos de produção desse acréscimo (R$ 487 milhões). Não é muito e não se vislumbra como isso possa crescer.

Pois bem, diante dessas definições, a ideia que o papel-moeda vai acabar, por conta do plástico e do tag, para não falar de milhas ou do bitcoin, parece especialmente grave diante da ansiedade recente em torno do monstro que dá título a este artigo. Na presença dessa criatura alienígena recém-chegada, segundo se diz, o governo não terá alternativa senão imprimir vastas quantidades de papel-moeda para pagar suas contas, inclusive a dívida pública.

Mas como se dará tal coisa se o papel-moeda está destinado à extinção?

Uma resposta meio prosaica foi dada por ninguém menos que Machado de Assis, numa crônica de 1896, a propósito das previsões de um espírita, segundo as quais novas tecnologias permitiriam que o papel-moeda fosse abolido (!). Se isso ocorrer, segundo diz o bruxo, “não haverá finanças, naturalmente, não haverá tesouro, nem impostos, nem alfândegas secas ou molhadas. Extinguem-se os desfalques andam tão a rodo que a gente de ânimo frouxo já inquire de si mesma se isto de levar dinheiro das gavetas do Estado ou do patrão é verdadeiramente delito ou reivindicação necessária.”

De fato, a vida ficaria muito mais difícil para a bandidagem na ausência de dinheiro em espécie, pois tudo transitaria por bancos deixando rastros para os agentes da lei. Foi assim que pegaram o doleiro Youssef, por exemplo, e se desenrolou o novelo do “petrolão”.

Quanto ao financiamento do Estado sob dominância fiscal, todavia, não vamos escorregar na nossa ansiedade: é tudo uma questão de preço. Pague-se mais juro que o povo aceita mais dívida, e esse tem sido o caminho percorrido faz muitos anos. O Brasil não tem a maior taxa de juros do mundo porque seus poupadores são campeões mundiais de ganância, mas porque tem o Estado mais endividado do mundo em proporção à riqueza do país. O monstro não é de outro planeta, nem é desconhecido: mora em Brasília há muitos anos e vinha emagrecendo até 2008. A partir daí, Dilma Rousseff, seguindo conselhos econômicos da pior espécie, resolveu terminar a dieta, e a criatura recomeçou a crescer.

Quanto mais dívida, mais juros, simples assim. Não há nada de novo nesse assunto de dominância fiscal, apenas mais clareza sobre como a política fiscal esmaga a política monetária, o que é um grande progresso. 






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