por Fernando Gabeira O Globo
Dilma lembrou-me, esta semana, de uma piada que li na velha revista
“Esquire”. Alguém dizia para Nikita Kruschev na ONU: seu alfaiate
deveria ser mandado para a Sibéria. No caso de Dilma não é quem faz a
roupa, mas a agenda, que deveria passar um tempo na Sibéria. No auge da
crise econômica, condenada por um rombo no orçamento que pode ser de R$
50 bilhões, desemprego em alta, lojas fechando, carros oficiais sem
gasolina, ela decide ir à Suécia reafirmar uma compra milionária de
caças.
Compreendo que a Aeronáutica precise dos caças e que a opção pela
tecnologia sueca tenha sido acertada. Sou, entretanto, de um tempo em
que os presidentes analisavam o momento e, em função dele, definiam sua
agendas. Qual o sentido, no auge dessa crise, de acenar, de novo, com a
compra dos caças de US$ 4,5 bilhões? Não queriam provocar, creio. Talvez
tenham pensado que esse gesto de Dilma, posando ao lado dos caças
milionários, iria elevar o ânimo da galera no Brasil.
Montada no maior escândalo mundial, gastando US$ 10 mil com a diária,
Dilma foi mais longe no seu delírio: deu a entender que tudo foi obra de
um homem só, Eduardo Cunha. “Lamento que isso aconteça com um
brasileiro.” “No meu governo não há corrupção.” São algumas de suas
frases lapidares.
Os fatos diários mostram ex-ministros encrencados com propina (como é o
caso de Edson Lobão, Paulo Bernardo e Gleisi Hoffmann), ministros atuais
investigados pelo Supremo (Edinho Silva e Aloizio Mercadante), uma
Petrobras arruinada, milhões de pessoas nas ruas protestando contra a
corrupção. Isso não é com ela, nem com seu governo. É raro um momento
histórico em que a verdade dos fatos seja espancada com tanto vigor e
cinismo.
Às vezes, a verdade sofre grandes abalos, como mostra Isaiah Berlin em
seu ensaio sobre o romantismo alemão do século XVIII. Naquele momento,
tratava-se da afirmação de uma verdade subjetiva, uma espécie de
inversão, de dentro para fora. Berlin aponta esse momento como um dos
decisivos no pensamento ocidental. Os próprios modelos humanos se
deslocavam. Saía de cena, o sábio que alcança a felicidade ou a virtude
pela compreensão. E entrava o herói trágico que busca realizar a si
próprio, a qualquer custo, sem se importar com as consequências. Para
Berlin, isso era uma virada quase tão grande como a produzida pelas
ideias de Maquiavel, para quem os valores políticos não são apenas
divergentes, mas podem ser contraditórios, com os valores cristãos.
O que acontece hoje, no entanto, não me parece uma versão decadente
dessas teorias que abalaram o pensamento ocidental. Os franceses
descrevem a cara de pau dos políticos com a expressão langue de bois.
E a definem como discursos cortados da realidade com o objetivo de
manipular o interlocutor. O que acontece, na verdade, me parece um pouco
mais com a descrição da linguagem infantil de Jean Piaget. Ele notou
que, até uma certa idade, a linguagem das crianças era egocêntrica:
falavam sem se preocupar em serem entendidas, falavam para si próprias.
A visão de que a luta política é uma sucessão de narrativas — eu crio a
minha, você cria a sua e vamos em frente — acaba dando margem a uma
conversa infantil e egocêntrica. Não importa se o outro acredita, essa é
a minha verdade. Vou continuar repetindo-a, independentemente dos
fatos. Eles são secundários, pois tenho uma narrativa.
Num país onde política e delinquência andam juntas, a atmosfera não está
apenas coalhada de versões, mas de álibis. Para entendê-los, valho-me
da experiência de repórter policial e não da política. Nesse campo, as
negativas costumam ser radicais, como o criminoso que diz que estava
fora de si, o corpo desobedeceu a mente.
Paulo Maluf diz que não tem conta na Suíça, a assinatura não é sua.
Eduardo Cunha diz que apenas seu advogado pode dizer se tem ou não
contas na Suíça. Dilma diz que no seu governo não há corrupção, Lula que
não tinha intimidade com o pecuarista José Carlos Bumlai, a quem deu
acesso livre ao seu gabinete.
Na verdade, não estão falando para a sociedade, mas para a polícia. Sua
linguagem pode me parecer egocêntrica, pelos padrões de uma conversa
adulta. Mas é a única que conseguem falar nesse momento. Os suspeitos
seguem em cena e a vida do país se degradando, na economia com o
desemprego, no meio ambiente com El Niño. Mais de uma centena de cidades
do Rio Grande do Sul em emergência. Seca no Sudeste e no Nordeste. Em
Minas, aumentou em 77% o número de incêndios em área de preservação
ambiental. Três grandes metrópoles — São Paulo, Rio e Belo Horizonte —
vão ter menos água ainda. Falar de El Niño nesse universo político é
arriscar o álibi uníssono; mas esse filho não é meu. Se as versões são
livres, que tal esta, que o poeta Affonso Romano dizia, quando jovem
pregador em Minas: “Arrependei-vos, ó raça de víboras, o juízo final
está próximo".
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