por João Pereira Coutinho Folha de São Paulo
A herança ibérica é causa dos problemas do Brasil? A pergunta é teórica.
E recorrente. Mas se tornou bem prática nos últimos dias: a convite da
associação Estudantes pela Liberdade, estive em São Paulo para uma
conversa sobre o assunto.
Não foi fácil: entrei no auditório, e estavam talvez umas 300 pessoas
para escutar e, quem sabe, pedir o meu escalpe. No fim, saí ileso e
ninguém comprou a ideia de que os portugueses são responsáveis pelo
estado do Brasil. É verdade. O país pode estar a caminho do abismo, mas
as novas gerações enchem o meu coração de otimismo.
Mas, como alguém diria, vamos ao que interessa: a colonização foi coisa
boa ou coisa má? A pergunta, pelo seu maniqueísmo, já vem coxa. Nenhuma
colonização é totalmente boa ou totalmente má. Houve bons legados e maus
legados.
Começo pelos bons: a ausência de uma "superioridade de raça". Sérgio
Buarque de Holanda sabia do que falava. Gilberto Freyre também. Como
dizem ambos, os portugueses que chegaram em 1500 já eram um povo
"mestiço" –uma salada de latinos, africanos, árabes e o diabo a quatro.
Isso é importante?
É. Porque não foram apenas os portugueses a colonizar o Brasil. Os
nativos também colonizaram os portugueses –e essa "plasticidade", para
usar um termo caro tanto a Sérgio Buarque quanto a Gilberto Freyre,
impediu a rigidez cultural, social, até sexual, que outros colonizadores
espalharam por seus domínios.
Sim, sei: você gostaria de ter sido colonizado por holandeses, ingleses, quem sabe franceses.
Coisa chique. O que significa que você não se importaria se o Brasil
tivesse virado uma África do Sul (tudo gente pacífica), uma Índia (ou um
Paquistão), ou talvez uma Argélia (o lugar mais próximo do paraíso
–quando há bombas).
Está no seu direito. Mas, como diz um amigo meu, você consegue mesmo
imaginar a "Garota de Ipanema" cantada em holandês? A "musicalidade" dos
brasileiros (no sentido amplo da palavra) precisou de semente mestiça
para florescer.
Pena que nem tudo tenha florescido –e aqui mergulho no lado lunar.
Sérgio Buarque de Holanda, uma vez mais, é um bom guia. Os portugueses
não foram exemplares na educação da colônia.
No século 18, afirma Sérgio, milhares de livros eram publicados no
México. Ao mesmo tempo, a Coroa portuguesa fechava as tipografias dos
trópicos por temer que ideias "subversivas" pudessem corromper a
estabilidade do Brasil.
E quem fala em livros fala em educação: Sérgio Buarque relembra que,
entre os anos de 1775 e 1821, 7850 bacharéis e 473 doutores e
licenciados saíram com diploma da Universidade do México. Em igual
período, só 720 brasileiros conseguiram a proeza (pela Universidade de
Coimbra, claro).
Finalmente, existe uma herança pesada da colonização portuguesa: esse
patrimonialismo que atribui ao Estado o papel de "baby-sitter" do
cidadão. Isso significa que homem começa a ganhar a mentalidade de uma
criança, que tudo espera do Estado, desde o berço até a sepultura.
Mas, se me permite, também pergunto: poderia ter sido de outra forma? Ou
a criação de uma nova nação –corrijo: de um continente inteiro– precisa
de um pouco de centralização política para garantir a unidade
territorial e administrativa? Ler Fernando Henrique Cardoso nesse
quesito é altamente instrutivo.
Ponto de ordem: os portugueses deixaram o Brasil há quase 200 anos. Uma
criança talvez acredite que um povo que deixou o país há dois séculos é
culpado pelo "mensalão", pelo "petrolão", pelo trio elétrico
Dilma-Lula-Cunha e, sei lá, pelo próprio aquecimento global.
Qualquer pessoa adulta sabe que o presente do Brasil é um produto das
escolhas dos brasileiros. Até porque lançar as culpas para o antigo
colonizador também serve para o próprio colonizador.
Os portugueses poderiam tranquilamente dizer que eles não têm culpa de
nada; a culpa é de Castela, ou seja, da Espanha, que existiu antes de
nós. Ou talvez tenha sido dos árabes, que existiram antes da Espanha. Ou
talvez tenha sido dos visigodos, que existiram antes dos árabes. Ou
talvez tenha sido de Roma, que existiu antes dos visigodos. Ou talvez
tenha sido dos gregos, que existiram antes dos romanos. Ou talvez tenha
sido do segundo macaco, que subjugou o primeiro macaco nos alvores da
Humanidade.
Chega de culpas. E, em 2015, chega de desculpas.
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