Namorando com o suicídio
Por J.R. Guzzo - Revista Veja
Se nada piorar neste ano de 2013, cerca de 250 policiais serão assassinados no Brasil até o dia 31 de dezembro.
Se nada piorar neste ano de 2013, cerca de 250 policiais serão assassinados no Brasil até o dia 31 de dezembro.
É uma história de horror, sem paralelo em nenhum país do mundo civilizado.
Mas
estes foram os números de 2012, com as variações devidas às diferenças
nos critérios de contagem, e não há nenhuma razão para imaginar que as
coisas fiquem melhores em 2013 – ao contrário, o fato de que um agente
da polícia é morto a cada 35 horas por criminosos, em algum lugar do
país, é aceito com indiferença cada vez maior pelas autoridades que
comandam os policiais e que têm a obrigação de ficar do seu lado.
A tendência, assim, é que essa matança continue
sendo considerada a coisa mais natural do mundo – algo que “acontece”,
como as chuvas de verão e os engarrafamentos de trânsito de todos os
dias.
Raramente, hoje em dia, os barões que
mandam nos nossos governos, mais as estrelas do mundo intelectual, os
meios de comunicação e a sociedade em geral se incomodam em pensar no
tamanho desse desastre.
Deveriam, todos,
estar fazendo justo o contrário, pois o desastre chegou a um extremo
incompreensível para qualquer país que não queira ser classificado como
selvagem.
Na França, para ficar em um
exemplo de entendimento rápido, 620 policiais foram assassinados por
marginais nos últimos quarenta anos
– isso mesmo, quarenta anos, de 1971 a 2012. São cifras em queda livre.
Na
década de 80, a França registrava, em média, 25 homicídios de agentes
da polícia por ano, mais ou menos um padrão para nações desenvolvidas do
mesmo porte. Na década de 2000 esse número caiu para seis – apenas
seis, nem um a mais, contra os nossos atuais 250.
O que mais seria preciso para admitir que estamos vivendo no meio de uma completa aberração?
Há
alguma coisa profundamente errada com um país que engole passivamente o
assassínio quase diário de seus policiais – e, com isso, diz em voz
baixa aos bandidos que podem continuar matando à vontade, pois, no
fundo, estão numa briga particular com “a polícia”, e ninguém vai se
meter no meio.
Essa degeneração é o resultado direto da política de covardia a que os governos estaduais brasileiros obedecem há décadas diante da criminalidade.
Em
nenhum lugar a situação é pior do que em São Paulo, onde se registra a
metade dos assassinatos de policiais no Brasil; com 20% da população
nacional, tem 50% dos crimes cometidos nessa guerra. É coisa que vem de
longe.
Desde que Franco Montoro foi eleito
governador, em 1982, nas primeiras eleições diretas para os governos
estaduais permitidas pelo regime militar, criou-se em São Paulo, e dali
se espalhou pelo Brasil, a ideia de que reprimir delitos é uma postura
antidemocrática – e que a principal função do estado é combater a
violência da polícia, não o crime.
De lá para cá, pouca coisa mudou. A consequência está aí: mais de 100 policiais paulistas assassinados em 2012.
O
jornalista André Petry, num artigo recente publicado nesta revista,
apontou um fato francamente patológico: o governador de São Paulo,
Geraldo Alckmin, conseguiu o prodígio de não comparecer ao enterro de um
único dos cento e tantos agentes da sua polícia assassinados ao longo
do ano de 2012.
A atitude seria considerada
monstruosa em qualquer país sério do mundo. Aqui ninguém sequer percebe o
que o homem fez, a começar por ele próprio.
Se lesse essas linhas, provavelmente ficaria surpreso: “Não, não fui a enterro nenhum. Qual é o problema?”.
A oposição ao governador não disse uma palavra sobre sua ausência nos funerais.
As
dezenas de grupos prontos a se indignar 24 horas por dia contra os
delitos da polícia, reais ou imaginários, nada viram de anormal na
conduta do governador. A mídia ficou em silêncio.
É o aberto descaso pela vida, quando essa vida pertence a um policial.
É,
também, a capitulação diante de uma insensatez: a de ficar neutro na
guerra aberta que os criminosos declararam contra a polícia no Brasil.
Há mais que isso.
A
moda predominante nos governos estaduais, que vivem apavorados por
padres, jornalistas, ONGs, advogados criminais e defensores de minorias,
viciados em crack, mendigos, vadios e por aí afora, é perseguir as sua
próprias polícias – com corregedorias, ouvidorias, procuradorias
e tudo o que ajude a mostrar quanto combatem a “arbitrariedade”.
Sua
última invenção, em São Paulo, foi proibir a polícia de socorrer
vítimas em cenas de crime, por desconfiar que faça alguma coisa errada
se o ferido for um criminoso; com isso, os policiais paulistas tornam-se
os únicos cidadãos brasileiros proibidos de ajudar pessoas que estejam
sangrando no meio da rua.
É crescente o
número de promotores que não vêem como sua principal obrigação obter a
condenação de criminosos; o que querem é lutar contra a “higienização”
das ruas, “postura repressiva” da polícia e ações que incomodem os
“excluídos".
Muitos juízes seguem na mesma
procissão. Dentro e fora dos governos continua a ser aceita, como
verdade científica, a ficção de que a culpa pelo crime é da miséria, e
não dos criminosos.
Ignora-se o fato de que
não existe no Brasil de hoje um único assaltante que roube para matar a
fome ou comprar o leite das crianças. Roubam, agridem e matam porque
querem um relógio Rolex; não aceitam viver segundo as regras obedecidas
por todos os demais cidadãos, a começar pela que manda cada um ganhar
seu sustento com o próprio trabalho.
Começam
no crime aos 12 ou 13 anos de idade, estimulados pela certeza de que
podem cometer os atos mais selvagens sem receber nenhuma punição; aos 18
ou 19 anos já estão decididos a continuar assim pelo resto da vida.
Essa
tragédia, obviamente, não é um “problema dos estados”, fantasia que os
governos federais inventaram há mais de 100 anos para o seu próprio
conforto – é um problema do Brasil.
A
presidente Dilma Rousseff acorda todos os dias num país onde há 50 000
homicídios por ano; ao ir para a cama de noite, mais de 140 brasileiros
terão sido assassinados ao longo de sua jornada de trabalho.
Dilma
parece não sentir que isso seja um absurdo. No máximo, faz uma ou outra
reunião inútil para discutir “políticas públicas” de segurança,
em que só se fala em verbas e todos ficam tentando adivinhar o que a presidente quer ouvir.
Não
tem paciência para lidar com o assunto; quer voltar logo ao seu
computador, no qual se imagina capaz de montar estratégias para
desproblematizar as problematizações que merecem a sua atenção.
Não se dá conta de que preside um país ocupado, onde a tropa de ocupação são os criminosos.
Muito pouca gente, na verdade, se dá conta.
Os
militares se preocupam com tanques de guerra, caças e fragatas que não
servem para nada; estão à espera da invasão dos tártaros, quando o
inimigo real está aqui dentro. Não podem, por lei, fazer nada contra o
crime – não conseguem nem mesmo evitar que seus quartéis sejam
regularmente roubados por criminosos à procura de armas.
A
classe média, frequentemente em luta para pagar as contas do mês, se
encanta porque também ela, agora, começa a poder circular em carros
blindados; noticia-se, para orgulho geral, que essa maravilha estará
chegando em breve à classe C.
O número
de seguranças de terno preto plantados na frente das escolas mais caras,
na hora da saída, está a caminho de superar o número de professores.
As autoridades, enfim, parecem dizer aos policiais: “Damos verbas a vocês. Damos carros. Damos armas. Damos coletes. Virem-se.”
É
perturbadora, no Brasil de hoje, a facilidade com que governantes e
cidadãos passaram a aceitar o convívio diário com o mal em estado puro.
É
um “tudo bem” crescente, que aceita cada vez mais como normal o que é
positivamente anormal – “tudo bem” que policiais sejam assassinados
quase todos os dias, que 90% dos homicídios jamais cheguem a ser
julgados, que delinquentes privatizem para seu uso áreas inteiras das
grandes cidades
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