por José Nêumanne
Já correu na boca do nosso povo a piada de que, na criação do mundo, o
anjo Gabriel perguntou a Deus por que Ele dotara grande parte do
subcontinente sul-americano de muitas belezas naturais, mas o teria
poupado de desastres corriqueiros em outras plagas, tais como
terremotos, tsunamis e monções. “Ah, mas você precisa esperar pra ver o
povinho que vou por lá”, teria respondido o Misericordioso. A anedota
pode ter alguma graça, mas é preconceituosa e injusta. A não ser que se
considere o fato de que nosso povo vive num Estado de Direito e lhe
cabem a prerrogativa e o dever de eleger seus governantes.
Está aí a tragédia de Brumadinho a mostrar no noticiário do dia a
desídia, a incompetência, a ganância e a insensatez do poder público,
cujos ocupantes são escolhidos pela sociedade. E estes estão entre os
principais responsáveis pelas mais inacreditáveis tragédias produzidas
pela mais que imperfeita obra humana.
Há 64 anos, os adversários do governo democrático e populista do
ex-ditador do Estado Novo Getúlio Vargas, a partir de investigações de
oficiais da Aeronáutica da dita “República do Galeão”, cunharam uma
expressão que levou o chefe do Poder Executivo ao suicídio: mar de lama.
O presidente impediu que a roubalheira que inspirou a metáfora fosse
investigada a fundo ao provocar a comoção posterior ao sacrifício que se
impôs, vertendo o próprio sangue para paralisar os adversários, que
passaram a ser chamados de “inimigos do povo”, e detendo a devassa que
já então se fazia necessária.
Principal vítima da roubalheira, a multidão comovida que acompanhou o
féretro até o embarque para o enterro em São Borja (RS), impediu que se
concluísse que a imagem fosse adotada para definir não um específico
escândalo de corrupção, mas o próprio País.
Por causa disso, nunca se saberá se a comparação, repetida por militares
e políticos de direita, era justa ou exagerada. Mas mesmo que a
investigação dos oficiais-aviadores houvesse continuado, dificilmente
nos desautorizaria a compará-la com o que aconteceu nos últimos anos a
uma porção de barro insuficiente para se produzir um pote. O combate à
corrupção elegeu Jânio Quadros e levou Fernando Collor a consagradora
vitória eleitoral para a Presidência de nossa insana República.
Nenhum dos dois, diga-se de passagem, cumpriu o mandato inteiro que lhe
cabia: o primeiro pela renúncia, o segundo por impeachment. Esse
desfecho repetido pode até levar os devotos da superstição – uma
modalidade de religião popular de muitos brasileiros – a imaginarem que
uma maldição ronda o bolso do cidadão permanentemente assaltado por
governantes, em geral corruptos, e que, também em geral, escapam de
punição.
Essa maldição começou a ser interrompida após o neopopulismo petista
praticar o mais extenso assalto aos cofres republicanos da História, na
certa, do País, talvez do mundo inteiro. Mercê do aparelhamento do
Supremo Tribunal Federal (STF), o chefão da quadrilha, Lula da Silva,
escapou ileso da primeira tentativa de punição, na Ação Penal n.º 470,
vulgo mensalão, providencialmente socorrido pelo militante de sua grei
Joaquim Barbosa.
Mas uma jovem geração de policiais, procuradores e magistrados federais
corrigiu o erro histórico da quadrilha sem chefe e levou a cumprirem
pena burocratas, políticos e empresários de altíssimo coturno, além de
um político mui popular no País.
A roubalheira inusitada dos 16 anos de três desgovernos e meio do PT de
Lula e Dilma e mais meio do aliado MDB de Temer, com a cumplicidade da
oposição do PSDB, comprada por propinas das maiores empreiteiras, expôs a
penúria a que o Estado brasileiro foi reduzido pela ganância desmedida
das elites dirigentes. Em 2016, a maior catástrofe ambiental do planeta –
o arrombamento da represa de rejeitos da Samarco em Mariana – deu a
dimensão do desprezo das ditas autoridades e do grande empresariado pelo
sofrido povo pobre abandonado à sua desdita.
Nos três anos e meio entre a destruição do Rio Doce pela lama infecta da
represa do Fundão e a tragédia do Córrego do Feijão, sexta-feira,
nenhum eventual responsável foi punido, nenhuma multa foi paga e nenhuma
vítima foi indenizada de maneira satisfatória. E a impunidade resultou
na repetição ampliada da tragédia desumana. Mariana, do núcleo das
cidades históricas do ciclo da mineração do ouro na colônia, sediou um
crime ambiental.
Brumadinho, onde está instalado Inhotim, o espetacular conjunto de
exposições artísticas a céu aberto, singular no planeta, mas financiado
com dinheiro sujo investigado no chamado mensalão, é a cena de um crime
contra a humanidade. A deputada estadual paulista eleita com 2 milhões
de votos Janaína Paschoal, do alto de sua condição de parlamentar mais
lúcida do Brasil contemporâneo e de professora de Direito Penal da
Universidade de São Paulo (USP), esclareceu no Twitter que, desta vez,
se trata de homicídio doloso por omissão.
E com a mesma coragem com que enfrentou a patrulha nazi-comunista do PT
no processo de impeachment de Dilma, cujo projeto resulta de parceria
sua com seu orientador Miguel Reale Júnior, em mensagem pessoal dirigida
ao autor deste texto por WhatsApp, sentenciou: “No lugar de aplicar
multa, o Ministério Público Federal precisa fazer TAC (ou seja, Termo de
Ajuste de Conduta, pelo qual o acusado se compromete a ajustar alguma
conduta considerada ilegal e passar a cumprir a lei) para fazer as obras
de prevenção. Tivesse feito isso, após Mariana não haveria Brumadinho.
Diante da magnitude de Brumadinho, do inegável desdém, dos homicídios,
só a prisão resolve”.
Prisão, explicou, “de todos aqueles que tinham o dever de evitar, foram
avisados e não fizeram nada” – que chama de “garantidores ou garantes”.
A tragédia do Córrego do Feijão é a obra máxima com que o Estado
brasileiro submete a população a rigores de catástrofes que substituem
tremores de terra, inundações causadas por chuvas torrenciais nos
trópicos, tsunamis e destruição por lavas de vulcões. A indiferença das
autoridades para minorar os efeitos das enchentes nas regiões de serra, o
ominoso incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, o abandono do
Museu da Independência, no Ipiranga, em São Paulo, a violência produzida
no inferno prisional brasileiro e transposta para ruas de Nísia
Floresta, Manaus, Boa Vista e agora, principalmente, Fortaleza são
registros dolorosos dessa capacidade de produzir o mal em escala
industrial.
O Brasil – dizem os cínicos – é a pátria de prostitutas que têm orgasmo,
gigolôs que se apaixonam e traficantes que se viciam. E o paraíso dos
delinquentes que se escondem na dissolução da culpa. Os donos da Vale
privatizada são, pela ordem, a Previ, fundo de pensão do Banco do
Brasil, a joint–venture da
mineradora australiana BMP Billiton com o banco estatal BNDES e o banco
privado Bradesco. A Previ divulgou uma nota lamentando o ocorrido. Por
enquanto, a joint–venture e a Bradespar calam.
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, declarou que “certamente
há um culpado ou mais de um culpado e o Ministério Público precisa
trabalhar de uma forma adequada, sem espetacularização, mas firmemente,
na busca dos responsáveis por essa tragédia”. A frase seria completa se
ela reconhecesse que o Ministério Público não fez o dever de casa depois
do antecedente de Mariana.
A resistência de esquerda crucificou Bolsonaro pelos planos anunciados
de afrouxar a fiscalização, embora nenhum deles tenha sido realizado. E
ao contrário de Dilma, que só sobrevoou Mariana cinco dias depois da
catástrofe, o presidente foi ao local e tomou as providências cabíveis
para o fato consumado. O PT, Dilma e Gleisi, aliás, têm muita culpa no
cartório, mas nem sequer pediram desculpas pela omissão.
Ao contrário de três anos atrás, Marina Silva, da Rede Sustentabilidade,
foi a Minas, mas lá não fez referência alguma ao fato de ter sido
ministra do Meio Ambiente no governo Lula, embora se tenha jactado de
ter dificultado a concessão de licenciamento para a usina de Belo Monte,
a milhares de quilômetros de Belo Horizonte, em cuja região
metropolitana aconteceu o arrombamento da represa de rejeitos da Vale.
Renan Calheiros usou as redes sociais para exigir, no mínimo, o
afastamento da diretoria da Vale. O prefeito de Brumadinho, Alvimar de
Melo Barcelos (PV), disse que o maior culpado pela tragédia é Fernando
Pimentel, mas o ex-governador petista, derrotado de forma humilhante nas
urnas, sumiu.
Toda a verdade é que o fato de serem muitos responsáveis, ao contrário
de atenuar sua culpa, não exime a obrigação do Ministério Público e do
Judiciário de puni-los exemplarmente, se for o caso, até com prisão. Mas
são órgãos do Estado brasileiro, cuja desfaçatez atinge as raias do
impensável. Não havendo no Brasil acidentes naturais por decisão divina,
o Estado e a elite brasileiros produzem desastres.
O Estado de São Paulo
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