por Fernando Gabeira
De vez em quando, ouço Luiz Melodia, que sempre me apoiou nas campanhas
claramente perdidas, antes mesmo do começo. O verso foi escrito num
contexto amoroso, no qual os amantes se esquecem do mundo. Infelizmente,
não posso seguir o amigo, nesse verso de “Pérola negra”.
Minha tarefa é exatamente procurar lembrar em que ano estamos. Não é
fácil. Para quem viveu longamente, muitos anos disputam o lugar de
modelo, referência para compreender o que se passa. Pouco servem diante
da singularidade de 2019.
A chegada de um novo grupo ao poder trouxe consequências imprevistas.
O novo chanceler Ernesto Araújo escrever que o aquecimento global é uma invenção do marxismo global.
Não conheci Osvaldo Aranha, embora tenha visitado seu túmulo no Sul.
Entrevistei, ainda jovem, Augusto Frederico Schmidt, leio constantemente
sobre a trajetória de Afonso Arinos, San Tiago Dantas. E há ainda os
grandes diplomatas de carreira. Nenhum desses homens, creio, seria capaz
de se antepor tão ousadamente às evidências científicas colhidas pela
humanidade.
Araújo é um intelectual. Fiquei até agradecido por aconselhar a leitura
de Clarice Lispector. Não sei bem o que ela estava fazendo no seu
discurso.
Mas é sinal de bom gosto. A própria Clarice ficaria perplexa como se estivesse diante de um búfalo ou de uma galinha.
Realmente, tenho de me esforçar muito para entender a política ambiental
de Bolsonaro. Antes de partir para Davos, aprovou para o Serviço de
Florestas um homem que quer liberar a caça de animais silvestres no
Brasil.
Esforço-me por entender o universo ético da família do presidente.
Flávio Bolsonaro apegou-se ao foro privilegiado para enfrentar denúncias
de movimentação financeira atípica. Em seguida, soube-se que ele
empregou em seu gabinete a mulher e a mãe de um matador ligado às
milícias.
Sua posição sobre as milícias admite que são vantajosas porque expulsam
os bandidos. Isso só pode ser entendido na linha do tempo.
A defesa das milícias nos dias de hoje não pode ignorar que controlam o
gás, parte do comercio imobiliário, do transporte coletivo e até do
tráfico de drogas. E matam muito.
O tempo torna mais aceitável a posição de Flávio. O desconcertante é que
a mulher e a mãe do bandido trabalharam até 2018 no seu gabinete. E
isso num período em que ele já estava na cadeia.
Minha perplexidade aumentou com o decreto de Mourão autorizando
funcionários de segundo escalão a classificar os documentos como
secretos. O projeto deles, com apoio da maioria, era o de combater a
corrupção. O decreto enfraquece precisamente a melhor arma contra esse
crime: a transparência.
Qualquer movimento de volta à opacidade serve apenas para levantar
suspeitas de concentração de poder. Ou de riqueza. A história recente no
Brasil deixou nas mãos da sociedade escaldada pelo menos um instrumento
de defesa, que é a transparência.
O fato de haver muitos militares no governo para mim não tem conotação
negativa. Considero-os uma força moderadora. Mas qualquer recuo na
transparência fica parecendo um enfoque militarizado do governo.
Mourão afirmou que o decreto já estava pronto no governo Temer.
Levamos anos discutindo essa lei de acesso. Se o decreto tinha mesmo uma justificava racional, por que não discuti-lo?
Estou muito velho para ficar desapontado, reclamando de governos. Mas
nem tanto para iniciar um leve combate agora que estou com a carteira
praticamente vencida.
Por que conciliar com a ignorância humana que pode arruinar nossos
recursos naturais? Por que aceitar um recuo na lei da transparência que
ajudei a construir na Câmara?
Espero que os eleitores de Bolsonaro não fiquem muito zangados. Nada
contra eles. O que penso sobre milícias, transparência e aquecimento
global não depende tanto de eleições. A ideia não é conhecer a verdade e
se libertar através dela? A minha é essa: milicianos são criminosos, o
planeta está se aquecendo, e não há nada mais suspeito do que golpear a
transparência.
O Globo
extraídaderota2014blogspot
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