por Gustavo Franco O Globo
Seria de uma pretensão sem tamanho imaginar que o Brasil inventou a
malversação, ou uma nova forma de capitalismo acinzentado. Temos nossas
contribuições, é verdade, mas não se pode perder de vista que estamos
diante de um dos grandes temas de nosso tempo, quem sabe uma epidemia
global, todavia, já plenamente identificada na literatura especializada,
sobre a qual vale se debruçar para melhor entender o que se passa
conosco.
A palavra “cronismo” não existe em português, mas temo que em pouco
tempo será um desses neologismos que aborrecem o senador Aldo Rebelo e
que, não obstante, adornam e enriquecem o idioma.
A palavra crony surge na Inglaterra no século XVII, vinda do grego khronios (nesse
caso, um estrangeirismo isento de tributação), significando “de longa
duração”, e progressivamente se tornou uma gíria para designar amigos,
afilhados, capangas, comparsas, apaniguados, membros de uma quadrilha ou
irmãos no crime.
A referência ao cronismo, e mais ainda a um capitalismo crony,
de ampla utilização na literatura econômica e sociológica, é bem mais
recente e cresceu em alusão a regimes onde as formas de organização das
trocas econômicas são tais que pouca coisa importante pode ocorrer sem
alguma forma de favoritismo, arbitrariedade ou corrupção. Não há
predominância dos mercados, senão na aparência, mas um “controle social”
das transações e mercantilização da ação do Estado.
A primeira onda de estudos sobre cronismo veio com a crise da Ásia e com
a percepção que este tinha sido o fator a desarrumar muitos dos países
outrora designados como “tigres”, mas que tinham retroagido a políticas
mais protecionistas, mercantilistas e amistosas demais a grandes grupos
nacionais familiares.
Em seguida, e não por acidente, o cronismo se tornou um grande tema nos
regimes que sucederam o socialismo na Rússia e na China, onde os velhos
aparelhos repressivos se privatizaram em relações nebulosas com o
governo formando uma espécie de capitalismo mais selvagem que os do
Ocidente e particularmente afetado por esquemas pessoais, clientelismo,
nepotismo e corrupção.
Depois de duas décadas do sepultamento do socialismo é certo dizer que
esta nova forma de capitalismo dirigido, desregrado, exagerado e
deturpado, onde existe um pântano envolvendo as relações entre o público
e o privado, espalhou-se em muitos lugares, embora em variados graus, e
ameaça a economia e a política através de ângulos inusitados.
É claro que os elementos constitutivos do cronismo sempre existiram —
como as máfias, as bruxas, a corrupção e o favoritismo, para não falar
dos inúmeros formatos para a alocação de recursos através de relações
pessoais, seletivas, corporativas, familiares, relacionais e em oposição
às relações de mercado.
O que é novo, entretanto, é a hegemonia do cronismo sobre os Estados
nacionais, a ponto de estabelecer as agendas de políticas públicas e os
andamentos maiores da economia, e pior, a “monetização” da intervenção
do Estado. Esse capitalismo de quadrilhas, comparsas, gangues, máfias,
laços ou companheiros, assume variadas vestimentas ideológicas, conforme
o contexto, meros disfarces, sua lógica é simples: a pilhagem.
Sem conhecer o Brasil, esteve aqui faz duas semanas o professor Luigi
Zingales (da Universidade de Chicago), com o propósito de lançar seu
novo livro (intitulado “Um capitalismo para o povo”), onde estabelece
uma disjuntiva que procura explicar os modelos econômicos que se
organizaram depois da Queda do Muro. Seu foco reside sobre a natureza do
relacionamento entre o público e o privado, onde ele distingue dois
regimes ideais, que designa como “pró-negócio” e os “pró-mercado”.
“Pró-negócio” é o regime do cronismo, onde o público e o privado se embaralham, mais ou menos como na velha boutade entre
Bernard Shaw e a bela bailarina que lhe propôs um filho com a beleza
dela e a inteligência dele. Pois os regimes “pró-negócio” são aqueles
onde os objetivos são os privados e a eficiência é a pública, o pior dos
dois mundos, a verdadeira pirataria.
O regime “pró-negócio” está longe de ser anticapitalista. Talvez se
possa dizer o exato oposto: é a privatização do Estado e o capitalismo
degenerado.
O regime “pró-mercado” é fundado na competição e na impessoalidade, o
velho capitalismo, como a democracia, o melhor de todos os regimes
ruins. Não se trata de Estado mínimo, nem de qualquer visão romântica
sobre o modo como o capitalismo funciona. Mas de trabalhar as virtudes
do sistema, que deve enfatizar a democracia e a horizontalidade,
enquanto o cronismo procura sempre a seletividade e a arbitrariedade. Em
vez de competição, meritocracia e impessoalidade, o regime do cronismo
estabelece a discricionariedade para escolher seus “campeões” com bases
em prioridades ad hoc e, às vezes, buscando apoio no nacionalismo ou no politicamente correto.
É claro que Zingales fala de coisas familiares: a oposição entre seus
dois regimes se sobrepõe a antigos dilemas nossos, por exemplo, entre a
casa e a rua (do antropólogo Roberto DaMatta), ou entre o
patrimonialismo e o mercado, entre o nepotismo e o concurso, o
favoritismo e a licitação, os campeões nacionais e as empresas comuns.
O cronismo desembarcou no Brasil pelas mãos do PT, que em 2008, passa de
uma postura passiva e envergonhada, para outra de extroversão onde
parecia atacar cada um dos pressupostos dos consensos internacionais em
políticas públicas. Na ocasião, o ministro Guido Mantega proclamou: “O
capitalismo precisa ser sempre reinventado. Onde está dando mais certo?
Nos países que adotaram o capitalismo de Estado.”
E lá fomos nós procurando ser “chineses”, ou ganhar o Nobel em economia,
através de várias “opções estratégicas”, como as escolhas para o
petróleo, e, mais genericamente, em todas as frentes de políticas
públicas onde se buscou confrontar as soluções de mercado pois, segundo
se dizia, o “capitalismo não regulado” havia fracassado no mundo
inteiro.
Seis anos e muitos escândalos depois, passando por prejuízos
bilionários, heterodoxias, pedaladas, e outras tantas coisas horríveis
que cabem muito bem dentro do figurino internacional do cronismo, é
bastante claro que essa nova matriz não apenas fracassou no tocante ao
desempenho da economia, como desandou em um oceano de irregularidades e
crimes.
É um fracasso histórico da maior importância, e que traz, como boa
notícia, a demonstração de que o Brasil possui anticorpos poderosos
contra o cronismo (nos órgãos de controle, no Judiciário e na mídia).
Fará muito bem ao país identificar e punir os crimes cometidos bem como
reforçar instituições que evitem que ideias extravagantes sobre a
economia tornem o Brasil mais vulnerável ao cronismo.
extraídaderota2014blogspot
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