Publicado no Blog do Nêumanne
A morte de um torcedor do Vasco logo
após o clássico contra o Flamengo sábado, à tardinha, em São Januário,
os riscos compartilhados por crianças, mulheres e famílias inteiras no
velho estádio e a confusão antes do jogo do Botafogo contra o Atlético
Mineiro na Arena do Engenhão domingo cedo resultarão, enfim, num basta
na impunidade dos bandidos que se misturam às torcidas para brigar e
ferir? Esta é a pergunta que não quer calar, mas infelizmente ainda não
dá para respondê-la.
O procurador-geral do Superior Tribunal
de Justiça Desportiva (STJD), Felipe Bevilacqua, no calor da hora, antes
de terminarem as transmissões dos canais de TV por assinatura, informou
que encaminharia a denúncia contra o clube no início desta semana. Ele
admitiu que, independentemente do julgamento, que pode resultar em
perdas de mando de campo na primeira divisão do Brasileirão, o local da
dita porfia poderá ser interditado, a exemplo do que ocorreu em junho
com o Serra Dourada, em Goiânia. E interditou segunda, à tarde… Até a
próxima vistoria…
O Ministério Público (MP) do Rio de
Janeiro também prometeu exigir, com igual presteza, a interdição do
campo por um longo período. O promotor Rodrigo Terra ressaltou que o
pedido do MP ocorrerá de forma distinta ao do STJD. De acordo com ele, o
objetivo do pedido de interdição é que sejam apresentados planos
estratégicos de segurança para a realização de eventos no estádio. “É
uma exigência do Estatuto do Torcedor que haja planos de ação para jogos
e campeonatos. Vamos pedir a interdição até que estes documentos sejam
apresentados, examinados e aprovados pela Polícia Militar” disse Terra,
em entrevista ao canal Sportv.
O que houve duas vezes no fim de semana
na zona norte do Rio não foi algo insólito. Mas apenas a repetição de
ocorrências mais ou menos graves dentro dos estádios de futebol ou em
seus arredores em praticamente todas as cidades brasileiras que sediam
partidas de campeonatos estaduais, regionais, federais ou
internacionais. A diferença do que se sucedeu dentro e perto do campo do
Vasco é que dessa vez os incidentes tiveram início antes do jogo,
atingiram o clímax pouco antes de a partida terminar e continuaram nas
ruas do entorno, culminando com uma morte.
Do lado de fora do estádio histórico
das celebrações do Dia do Trabalho com o presidente Getúlio Vargas, foi
morto a tiros Davi Rocha, de 26 anos, que fazia parte da 9.ª Família da
Força Jovem do Vasco, da zona oeste do Rio. Morador de Santa Cruz, o
ajudante de eletricista saiu sozinho de casa, mas teria integrado um
comboio da torcida. A família até tentou desmentir sua ligação com a
“torcida organizada”, mas O Globo a comprovou com fotografias e a reprodução de mensagens em redes sociais.
A ligação da vítima com parte dos
agressores não é inusitada, mas, ao contrário, confirma que a paixão por
um time ou pelo esporte profissional não passa de pretexto. Todos os
eventuais motivos aventados para a eclosão da fúria nas arquibancadas
foram negados no desenrolar dos acontecimentos. Antes do apito inicial
do árbitro, os repórteres encarregados da cobertura do clássico de maior
rivalidade no futebol carioca foram advertidos pelo próprio corpo de
segurança do clube anfitrião de que deveriam passar rapidamente, sem
demonstrar estranhamento, que poderia ser confundido com hostilidade,
num determinado ponto da arquibancada apelidado de “Faixa de Gaza”.
No gramado, diante das duas maiores
torcidas da antiga capital federal (daí, a denominação de “clássico das
multidões”), os dois times desempenharam uma exibição tensa e faltosa,
de baixíssima qualidade técnica, com as atuações merecendo a nota
explicitada no placar: 0 a 0. Com a torcida do time visitante segregada a
um canto tido como mais seguro da arquibancada, sem esboçar reação
notória, o segundo tempo foi iniciado com uma leve melhora da qualidade
do prélio.
Numa jogada violenta no campo de ataque
do dono da casa, o artilheiro Luís Fabiano, conhecido como Fabuloso, deu
uma entrada de extrema violência num adversário, o zagueiro Leo Duarte,
que saiu machucado de campo. O lance foi interrompido e o gol anotado
pelos anfitriões em seguida, anulado com a paralisação da partida. Foi
uma espécie de senha para o começo da violência: bombas, água em copos
de plástico, barras de ferro e varetas transformadas em lança foram
jogadas no gramado, no qual o visitante terminou marcando o único tento,
da vitória.
O melhor relato da batalha campal que se
seguiu ao apito final do árbitro foi escrito pelo repórter Pedro Ivo
Almeida, do Uol, que salvou uma criança de nove anos, com incômodo
respiratório provocado pelo gás de pimenta jogado pela Polícia Militar
(PM) para tentar acuar os arruaceiros. Depois de molhar os olhos, a boca
e o nariz do menino envergando uma camisa do Vasco com seu nome –
Carlos Henrique – estampado abaixo do número 10, usado pelo ídolo do
time, Nenê, o repórter teve a lucidez de chamar a atenção de seus
leitores para alguns lugares-comuns que em nada ajudam a entender. Mas,
ao contrário, só trazem mais confusão às vãs tentativas de acabar com a
insensatez reinante nas explosões de violência e nos métodos utilizados
sem resultado para detê-las.
Um lugar-comum negado é o de que a
violência resulta da paixão exacerbada dos torcedores por seus clubes de
coração e sua rivalidade com os adversários. Na verdade, tudo foi
planejado antes. A guerra se travou no espaço reservado unicamente à
torcida “da casa” e foi exercida por quem acorreu ao jogo para bater e
matar, não para torcer. Esporadicamente as torcidas se aproximaram e
jogaram objetos nos adversários tornados inimigos. Mas o conflito
travou-se apenas entre cruz-maltinos.
Dessa forma, o martírio de São Januário
desafiou a falsa solução da torcida única, a que as autoridades
responsáveis pela segurança recorrem sempre para evitar desforços
físicos entre rivais, sendo que, na verdade, as brigas entre quadrilhas
organizadas fantasiadas de torcedores de um time são mais comuns do que
imagina a vã filosofia de policiais e promotores.
O presidente do Vasco, Eurico Miranda,
inculpou a PM por não ter feito com competência a revista de quem teve
acesso às arquibancadas com bombas. O major PM Hilmar Faulhaber, do
Grupamento Especial de Policiamento de Estádios, deu entrevista
insinuando que funcionários do clube podem ter guardado as bombas no
campo da batalha para serem usadas durante o jogo disputado no gramado.
Nenhum dos dois convence. Eurico quis provar que seu estádio é seguro e
foi desmentido pelos fatos: ficou evidente que o imóvel é velho e não
dispõe das condições exigidas para a realização de clássicos em suas
dependências. O oficial não apresentou provas de que sua hipótese não
passava de mera desconfiança.
A tentativa feita pelo cartola de
explicar a tragédia como reação indignada à situação calamitosa do
Estado do Rio, a cuja elite política, aliás, ele pertence, ou à crise
econômica, moral e política do Brasil padece de extremado irrealismo. A
culpa do Estado pelas ocorrências lamentáveis de sábado limita-se ao
abandono em que se encontra o Maracanã, construído pela prefeitura do
Rio para a Copa de 1950 e hoje gerido pelo governo do Estado, mas no
centro de uma polêmica judicial depois que o consórcio, formado por uma
empresa gestora americana e a empreiteira Odebrecht, envolvida na
corrupção investigada pela Operação Lava Jato, decidiu devolver ou
transferir a concessão. Eurico não pode, contudo, usar essa
justificativa, pois o jogo de sábado só foi realizado na praça esportiva
obsoleta do clube que preside por ele ter exigido exercer seu direito
de mando, com evidente prejuízo neste particular desde a interdição
decretada dois dias depois da tragédia num bairro que o samba consagrou
como símbolo da adesão do malandro ao operário que ia de bonde ao
emprego.
Na manhã do domingo seguinte, antes da disputa entre Botafogo e Atlético-MG no Estádio Nilton Santos, construído para os Jogos Panamericanos do Rio e adaptado para ser uma moderna arena, usada na Olimpíada do Rio em 2016, torcedores cariocas e mineiros entraram em confronto perto da estação de Engenho de Dentro, da Supervia. Ou seja, e la nave va e vida que segue. Ou melhor, a violência, a mortandade e a impunidade continuam… Também no futebol.
EXTRAÍDADECOLUNADEAUGUSTONUNESOPINIAOVEJA
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