por José Nêumanne O Estado de São Paulo
O historiador cearense Capistrano de Abreu (1853-1927), colega de classe
de padre Cícero Romão Batista no seminário de Fortaleza, não ficou
famoso por causa disso, mas por uma piada, seu projeto de Constituição,
que rezava, categórico: “Artigo 1.º : Todo brasileiro deve ter vergonha
na cara. Artigo 2.º: Revogam-se as disposições em contrário”.
Nenhum de nossos projetos constitucionais teve o poder de síntese dessa
chacota, que de tão atual se tornou denúncia. A cada nova legislação
este país se torna cada vez mais a “república dos sem-vergonha”. E a
sociedade dos otários espoliados. A primeira página do Estado de anteontem registrou: Câmara quer mudar delação premiada e prisão preventiva.
E a notícia a que ela se refere, da lavra de Isadora Peron, da sucursal
de Brasília, completou: “Também estudam revogar o entendimento de que
penas podem começar a ser cumpridas após condenação em segunda
instância”.
Na mesma edição deste jornal, que se notabilizou pelas lutas pela
abolição da escravatura, pela proclamação da República, contra o Estado
Novo e a ditadura militar, os repórteres de política Pedro Venceslau e
Valmar Hupsel Filho relataram a saga de Vicente Cândido (PT-SP) para
promover uma reforma política que inclua um Fundo Partidário de, no
mínimo, R$ 3,5 bilhões; o distritão, em que só os mais votados para
deputado se elegem; e, last but not least,
a “emenda Lula”. Esta merece destaque especial, por impedir que
postulantes a mandatos eletivos sejam presos oito meses antes da data
marcada para a eleição, mesmo que só venham a ter suas candidaturas
registradas oficialmente quatro meses após esse prazo. O nome do
presidenciável do Partido dos Trabalhadores (PT), no qual milita Sua
Candidez, é usado como marca registrada da emenda por atender ao fato de
que Luiz Inácio Lula da Silva acaba de ser condenado a nove anos e meio
de prisão e proibido de ocupar cargos públicos por sete anos pelo juiz
Sergio Moro, na Operação Lava Jato.
A proibição de prender quem avoque sua condição de candidato é a mais
abjeta das propostas do nada cândido (claro, impoluto) relator, mas não é
a que produzirá, se for aprovada pelo Congresso Nacional, mais
prejuízos, em todos os sentidos, para a cidadania. As medidas
cinicamente propostas pelo “nobilíssimo” parlamentar produzem, em
conjunto, um despautério que provocaria a aceleração do enriquecimento
dos partidos e de seus representantes, em particular os dirigentes, sob a
égide de um sistema corrupto e que trava a produção e o consumo,
empobrecendo a Nação. O financiamento público das milionárias campanhas
eleitorais legaliza a tunga ao bolso furado do cidadão.
Ex-sócio do presidente da CBF, Marco Polo Del Nero, que não sai do País
para não ser preso pela Interpol, Sua Candura-mor, o deputado ecumênico,
integra o lobby a favor da legalização dos cassinos e foi um dos
idealizadores da campanha de Rodrigo Maia (DEM-RJ) à presidência da
Câmara. A reforma ressuscita uma ideia que nunca pareceu ter muito
futuro e sempre foi apregoada pelo presidente Michel Temer: o distritão.
Trata-se da volta do tílburi ao Vale do Silício, pois reduz a pó as
tentativas vãs de tonificar a democracia, dando mais força aos partidos,
e estimula o coronelismo partidário, usando falsamente a modernização,
confundindo-a com voto distrital.
O Estado noticiou
que o patrimônio de Cândido aumentou nove vezes nos últimos nove anos
(descontada a inflação no período). Neste momento, em que as arenas da
Copa do Mundo da Fifa em 2014 – de cuja lei foi relator – têm as contas
devassadas por suspeitas de corrupção e um juiz espanhol mandou prender o
ex-presidente da CBF Ricardo Teixeira, o eclético parlamentar achou um
parceiro no Senado: o relator da reforma política e líder do governo
Temer na Casa, Romero Jucá (PMDB-AP).
Enquanto Cândido e Jucá providenciam a engorda dos cofres partidários
para garantir as campanhas perdulárias, que vinham sendo feitas à custa
de propinas milionárias, a comissão especial da reforma do Código de
Processo Penal (CPP) batalha pelo abrandamento da legislação de combate à
corrupção no Brasil.
A reforma do CPP, que é de 1941, foi aprovada no Senado em 2010. Na
Câmara ficou esquecida até o ano passado e foi desengavetada durante o
mandarinato do ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), atualmente preso em
Curitiba. O presidente da comissão especial que discute as mudanças na
Casa, deputado Danilo Forte (PSB-CE), que apareceu recentemente na
lambança de Temer ao tentar atravessar a adesão dos dissidentes do PSB
ao DEM, discorda de presos fecharem acordos de delação premiada com
procuradores.
Forte também considera que é preciso punir juiz que desrespeite as
regras da condução coercitiva, que deveria ser empregada apenas se uma
pessoa se negar a prestar depoimento. O presidente da comissão especial
parece até ter inspirado sua ideia na recente decisão de Nicolás Maduro,
que ameaçou de prisão os juízes que o Parlamento da Venezuela – de
maioria oposicionista e contra a Constituinte que ele quer eleger no
domingo, no modelo da pregada por Dilma – escolheu para a Suprema Corte.
A reforma política de Cândido e Jucá e as mudanças no CPP propostas por
Forte, aliado de Temer, evidenciam tentativas de adaptar as leis
eleitorais e penais do País aos interesses pessoais de chefões políticos
encalacrados nas operações, Lava Jato entre elas, inspiradas em
convenções da ONU, da OEA e da OCDE contra a roubalheira geral,
importadas por Fernando Henrique e Dilma e agora ameaçadas pelos que
defendem a impunidade de quem for flagrado. Esse “acordão”, que denota
fraqueza e sordidez, põe o Brasil, já na contramão da prosperidade,
também na trilha oposta da luta contra o roubo. Aqui a vergonha
empobrece o portador.
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