Luiz Felipe Pondé: Folha de São Paulo
Lembro-me que a primeira vez que li a Bíblia, por volta dos 13 anos de
idade, achava estranho Abrãao, um dos heróis de Deus, referir-se a si
mesmo dizendo "Eu, que sou pó e cinzas...".
Com o passar dos anos, fui cada vez mais entendendo como esse
autorreconhecimento, na verdade, era o passo necessário e eficiente
(como se diz na mais alta filosofia) para o restante do enredo: a
convivência com o Deus de Israel só é possível se você fizer a
experiência "esmagadora" da verdade de si mesmo.
Esse é o preço para se viver ao lado do Santo. Sendo Ele pleno, e nada
resistindo a esta plenitude, a única forma de plenitude possível aos seu
heróis era o reconhecimento de sua própria insuficiência. Perceber-se
insuficiente é uma libertação.
Daí decorre muito do mau entendimento desse enredo e de seus
personagens. A suposta "humilhação" que muitos pensam ver na relação com
o Deus de Israel é apenas fruto de má leitura, ou de pouca leitura, ou,
simplesmente, como diria um dos meus filósofos preferidos, Santo
Agostinho (354-430), "orgulho, revolta e cegueira".
Parece-me que a correta interpretação dessa confissão de insuficiência
presente na imagem de "pó e cinzas" é o encontro libertador com a
humildade. Georges Bernanos (1888-1948), outro autor que me forma
intelectualmente e espiritualmente continuamente, dizia que a humildade
é, de todas as virtudes, a única imbatível.
Abraão, ao se reconhecer como pó e cinzas, simplesmente, encontrava sua
libertação definitiva. A humildade bíblica é a mais profunda forma de
libertação já descrita na literatura ocidental. O "rochedo da humildade"
é imbatível como experiência existencial e espiritual.
A libertação não habita a boçalidade da assertividade treinada em
workshops movidos a ressentimento "caché" (em francês, é mais chique
dizer "escondido").
Nem tampouco em fórmulas neurolinguísticas a serviço desse pequeno
ditador chamado "eu". Menos ainda em formas de espiritualidade quântica
para consumo.
Diante desse fato, sinto-me um pouco como o filósofo judeu russo Lev
Chestov (1866-1938), que se dizia um ateu convicto de que a mensagem
bíblica é essencial para o conhecimento do lugar do homem em constante
busca de dar sentido a uma vida em si insustentável.
Os ingênuos creem nas mais distintas formas de "idealismos", como dizia
Chestov, contra a monstruosidade da realidade. "Sofremos a existência" e
narrar esse sofrimento talvez seja a forma mais sublime de sinceridade
que alguém que tem como profissão a escrita pode ter para com seus
semelhantes.
Outro russo, filósofo também, Nicolas Berdiaev (1874-1948), influenciado
diretamente por Dostoiévski (1821-1881), como Chestov, via a aventura
espiritual humana como um combate entre o Nada do qual fomos tirados, e
que nos habita intimamente, e a possibilidade de sermos criadores, como o
Criador.
Para isso, a coragem de fugir da "cotidianeidade" banal é essencial.
Essa banalidade se dá por meio de uma vida vivida com o espírito de
rebanho, longe da "aristocracia espiritual" de que tanto falou Berdiaev,
conceito retirado de Nietzsche (1844-1900), claro.
A vida espiritual como enfrentamento desse Nada, manifesta-se, entre
outras formas, na superação do orgulho moral, traço clássico das almas
ressentidas, incapazes de reconhecer o "nada do pecado" em si mesmas. Ao
contrário do que prega nossa vã teologia da autoestima espiritual, o
pecado é um dos conceitos mais libertadores na tradição ocidental.
A beleza de Deus nos impacta de formas distintas. Nosso vazio enxerga
Deus melhor do que nosso orgulho. A passagem do Novo Testamento, em que
Jesus está ao lado de dois ladrões no Gólgota, é paradigmática. Enquanto
um, o mau ladrão, exige que Jesus use seus "superpoderes" de filho do
Deus todo poderoso para tirá-los da cruz, o outro, o bom ladrão, pede
que Jesus simplesmente se lembre dele, um ladrão que merece a cruz,
quando entrar em Seu reino.
Por isso, no judaísmo, na oração "Nosso Pai e nosso Rei", falada no Dia
do Perdão, se diz: "zachur ki afar anáchnu": Lembra-Te de que nada mais
somos do que pó.
extraídaderota2014blogspot
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