Folha de São Paulo Demétrio Magnoli:
"Um liberal não passa de um fascista em férias." O Ênio, um pitoresco colega de faculdade, acreditava mesmo na sua boutade, cunhada há 40 anos. Lembrei dele, e dela, nesses dias de "transição trumpiana". Nos EUA, usa-se a palavra "conservador" para o que chamamos "liberal" (pois, por lá, "liberal" é algo mais ou menos próximo de um social-democrata). Os liberais ("conservadores") americanos saltam às dúzias no barco de Trump, ainda que subsistam bolsões de resistência, como McCain e os Bush, no establishment republicano, e a revista Commentary, na franja ideológica do movimento conservador. A adesão em massa indica que o maior derrotado no 9/11 não foi o Partido Democrata, mas o pensamento liberal americano.
Trump obviamente não é um fascista (mesmo Marine Le Pen não o é), porém representa o que de mais próximo do fascismo foi produzido pela história americana. O presidente eleito está tão distante do credo liberal quanto a Lua da Terra. O conflito estende-se pelos domínios da política, da cultura e da economia. Trump é nacionalista; os liberais, internacionalistas. Trump é nativista; os liberais, cosmopolitas. Trump é protecionista; os liberais, livre-cambistas.
Que liberais são esses dispostos a abraçar um líder que promete destruir os acordos de livre comércio dos EUA e cercar a economia do país com uma muralha chinesa de taxas aduaneiras? Com que cara admitem a hipótese de expulsão de 11 milhões de imigrantes, cujo pressuposto seria a edificação de uma máquina estatal de deportação de natureza totalitária? Seduzidos por Trump, os liberais americanos já estão prontos para seguir seu improvável líder, cortejando antiliberais como o britânico Farage, a francesa Le Pen e o russo Putin?
Nos anos Obama, sob a inspiração dos radicais do Tea Party, os republicanos começaram a fazer experiências antiliberais, divertindo-se no pátio do nativismo e da xenofobia. Trump não é um raio no céu claro, mas um fruto inesperado desses desvios. Contudo, seu triunfo tem consequências: o partido dos liberais foi sequestrado pela "alt-right", uma sombria "direita alternativa" que singra nas águas do neonacionalismo e do populismo econômico. Os liberais americanos sempre alertaram para o perigo do abuso de poder estatal; hoje, silenciam diante da tragédia de Aleppo. Esses liberais sempre pregaram o equilíbrio fiscal; hoje, adulam o magnata dos negócios suspeitos que anuncia uma torrente de gastos públicos e a expansão descontrolada dos deficits orçamentários. Para ganhar acesso à Casa Branca, deixam na porta a bagagem de suas crenças.
Os nomeados de Trump, um círculo de extremistas antiliberais, dão uma ideia dos rumos de seu governo. Steve Bannon, estrategista-chefe, é o editor do Breitbart News, o site oficioso da "alt-right", navegado por supremacistas brancos e repleto de proclamações islamofóbicas. Mike Flynt, assessor de Segurança Nacional, é o general aposentado que sentou-se ao lado de Putin, em Moscou, depois de proferir um discurso no qual pediu a prisão de Hillary Clinton e qualificou Obama como um "mentiroso". David Friedman, embaixador em Israel, é um fervente adversário da partição da Palestina em dois Estados, a linha política oficial, compartilhada por democratas e republicanos, cuja fonte encontra-se no princípio da autodeterminação dos povos. Wilbur Ross, secretário de Comércio, é o autor da frase "livre comércio é como almoço grátis; não existe almoço grátis".
Na campanha, Trump pregou o uso da tortura contra suspeitos e terrorismo e, depois de eleito, sugeriu casualmente que o assassinato de familiares de terroristas seria uma tática adequada na "guerra ao terror". Não concordei, e ainda não concordo, com o Ênio do passado distante. Mas os liberais americanos —e uns tolos brasileiros que os mimetizam— empenham-se em dar-lhe razão.
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