por Monica De Bolle O Estado de São Paulo
“Em
uma era em que todas as grandes ideias perderam credibilidade, o medo
do inimigo fantasma é tudo o que restou aos políticos para manter o
poder.”
Adam Curtis, no documentário The Power of Nightmares: The Rise of the Politics of Fear
Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo, proponente da tese de que a
modernidade tornou-se fluida – normas sociais, instituições,
comportamentos deixaram de ter forma sólida e passaram por processo de
liquefação que se alimenta e retroalimenta da incerteza endêmica –, usou
a citação acima para explicitar o conceito de que o mundo sem
fronteiras prometido pela globalização é também mundo em que ansiedades
indefinidas e medos fluidos tornam o comportamento humano errático.
O Brexit e a eleição de Donald Trump nos EUA seriam reflexos desse medo
do desconhecido que se apoderou dos indivíduos em diversas partes do
planeta. Brexit e Trump são sintomáticos do comportamento humano
errático e fluido que busca soluções aparentemente fáceis para problemas
complexos. Fechem as fronteiras, devolvam nossos empregos, expulsem os
imigrantes, restaurem nosso grandioso passado, passado em que nossos
líderes eram temidos e respeitados. A resposta a essas demandas dos dois
lados do Atlântico é igualmente errática, embora pareça ousada e
assertiva. Saiamos da União Europeia. Alteremos a ordem mundial,
proclamando a Otan “obsoleta”, denunciando a UE como um “fracasso”, a
China como “hostil”, o México como país que exporta “criminosos e
estupradores”. Viva a Rússia. Entre o espetáculo de presumida força nos
gestos, discursos e tweets de líderes anglofônicos esconde-se perigosa
insegurança, o medo fantasma que assombra cidadãos que optaram por
caminhos duvidosos.
Brexit. Theresa
May proferiu aguardado discurso sobre como haverá de se dar a saída da
Grã-Bretanha da União Europeia. Insistiu que não mais farão parte os
britânicos do mercado único europeu – contribuição de Margaret Thatcher
–, mas que negociarão tratados de livre comércio com membros da UE.
Afirmou com contundência que não aceitará imposição punitiva de membros
da UE durante o processo de divórcio, que deve durar pelo menos dois
anos. Revelou que o parlamento inglês dará a palavra final sobre os
termos do Brexit quando forem apresentados no prazo de 24 meses. Entre
tudo o que disse May foi a fala sobre o parlamento que deixou evidente a
fragilidade e a insegurança – a fluidez – dos planos. Qual o destino do
Brexit se daqui a dois anos o parlamento decidir que os termos do
acordo não são palatáveis? Ninguém sabe, nem a própria Theresa May. É
possível que se a economia britânica estiver mal daqui a dois anos, os
defensores do Brexit – não os políticos, mas a população – mudem de
ideia. Fluidez, afinal, é a marca da modernidade. Nesse caso, o governo
de May acabaria, como acabou o de David Cameron. É igualmente possível
que se o parlamento decidir que o acordo negociado com a UE não atende
aos interesses da Grã-Bretanha, a Organização Mundial do Comércio seja
forçada a impor as novas regras que deverão prevalecer. Ninguém sabe o
resultado disso.
Trump. Donald
Trump tonar-se-á presidente dos Estados Unidos no fim desta semana em
meio a protestos generalizados e a um nível de desaprovação histórico
nas transições de poder americanas. Desde que foi eleito, provocou
tensões diplomáticas, derrubou o peso mexicano, brigou publicamente com
celebridades e membros do Congresso, induziu volatilidade nas ações de
empresas automotivas, farmacêuticas e fabricantes de aeronaves, mexeu
com o dólar. Depois de defender a introdução de um imposto
transfronteiras, pilar da reforma tributária Republicana, agora afirma
que isso seria “muito complicado”, salientando que suas relações com o
Congresso serão tão impetuosas quanto seu dedo nervoso no twitter.
Tempo líquido, tempo de incerteza maligna, tempo de medo indefinido,
tempo de insegurança endêmica. Tempo, tempo, tempo, tempo: entro num
acordo contigo, por seres tão inventivo, e pareceres contínuo.
*Economista, é pesquisadora do Peterson Institute For International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
extraídaderota2014blogspot
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