por Roberto DaMatta O Globo
Não me conformo com gigantescas desigualdades salariais. Como antropologista, eu obviamente compreendo que um banqueiro, um empresário, um jogador de futebol, um astro de novelas, um cantor-compositor popular ganhe num mês muito mais o que toda a minha família conseguiu juntar em muitas gerações. Mas a compreensão não acaba com o meu ressentimento de ser professor num país onde ensinar é uma atividade profundamente desvalorizada, coisa para quem não sabe!
Meu avô foi desembargador pelo Estado do Amazonas, e meu pai era fiscal do consumo. Não ganhavam mal e eram parte das “classes dominantes”, conforme aprendi atônito no diretório da faculdade no qual aprendi minhas primeiras e erradas letras ideológicas.
Não sofri carência material, e nossa casa, com seus serviçais, reproduzia o ordinário de vida dos que eram significativamente chamados de “remediados”. Gente que o realismo de vovó Emerentina dizia ser parte de uma “pobreza envergonhada” porque não podiam usar sapatos furados, tinham contas a pagar e manter um estilo de vida de molde aristocrático.
Ouvi, é claro, histórias de funcionários públicos que “roubavam”, por oposição à honestidade canina da família, que recusava seguir o caminho da “política” — uma dimensão destinada a seduzir, enriquecer e eventualmente desmoralizar.
Vivi, pois, comendo o que havia na mesa. Não poderia jamais imaginar que os “remediados” de hoje levariam seus mal-educados filhinhos à Disney, enquanto meus cinco irmãos e eu íamos, no máximo, ao cinema.
Vivi num mundo com larápios mas sem “corruptos”. Alguns dos quais eram conhecidos e compadres. Arrumavam-se pelos laços pessoais chamados de “política”, e era inimaginável que um partido de esquerda viesse a engendrar um sindicato do crime composto por controladores do patrimônio do país e alguns empresários ousados e canalhas.
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Hoje, o ideal é todo mundo ser rico. Donald Trump e os seus irmãos brasileiros encarnam esse estilo próprio dos vencedores arrogantes que se sentem violentados quando viram réus. O melhor símbolo da riqueza como valor absoluto, porém, é o grupo dos oito hipermilionários que detêm um patrimônio igual à metade mais pobre da população do planeta.
Eu fui ensinado que há vergonha tanto na extrema pobreza quanto na riqueza podre, porque desmedida. Daí a minha indignação com essas brutais diferenças. Oito tendo mais do que um bilhão é um acinte a qualquer código moral. Os seus deuses podem aceitar (e justificar) tal desigualdade, mas a minha moralidade humana — finita, indigna e conservadora — não tolera esse abismo.
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A perplexidade diante de um mundo quantificado ao culhaonésimo, como dizia meu tio Silvio; um universo canibalizado pelo mercado e em sintonia com a comunicação de tudo com todos e de todos com o planeta que também é visível faz com que se veja o tamanho da desigualdade e o abismo da (in)diferença nas quais estou, sem pedir, engolfado.
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Aprendi que a transformação de tudo em mercadoria levaria a um estilo de vida onipotente e afinado ao suicídio. Hoje, essas absurdidades são reais.
Se oito possuem (com toda a filantropia que praticam e a boa vontade que podem ter) a riqueza das nações, estamos diante do milagre da multiplicação ao inverso. Multiplicamos tudo mas, quanto mais produzimos, pior distribuímos. A abundância engendra riqueza e, ao mesmo tempo, desperdício e miséria.
Creio porque é absurdo! Dizia Tertuliano nos primórdios do cristianismo que propôs deixar o familismo tribal, partidário e faccional para abraçar a fraternidade universal. Não faça com o outro aquilo que você não quer que seja feito com você!
O que mais fazer com uma coluna?
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A mensagem de um Richard Moneygrand deprimido afirma que Donald Trmp presidente vai além de um acidente eleitoral. Ele é, de fato, o retorno da hierarquia e do particularismo patriótico, numa sociedade ressentida com o universalismo e com suas perdas globais.
Trump — continua meu mentor — é prenúncio de choque com a mídia e dos conflitos de interesse que ameaçam, como disse Obama num notável discurso de despedida, a dimensão mais árdua da democracia e um autogoverno funcional. Esse self-government, cuja primeira exgiência é dizer não a nós mesmos.
PS: Lamento a morte do ministro Teori Zavascki e continuo perplexo com o poder de mando das facções degoladoras que, aprisionadas, têm mais influência do que os professores teoricamente livres de Uerj e da Uenf — essas facções do bem que estão se acabando.
extraídaderota2014blogspot
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