por José Eduardo Faria O Estado de São Paulo
As notícias divulgadas pelos jornais nas últimas semanas têm como denominador comum a erosão do poder público e a diluição das fronteiras entre o lícito e o ilícito, entre os interesses comuns da sociedade e os de grupos com poder de voz, mobilização e veto. Em outras palavras, o aumento descontrolado da violência põe em risco a segurança jurídica. O interesse público foi apropriado por empreiteiras e facções criminosas. O Estado está imobilizado e operadores jurídicos empenhados em restabelecer o primado da lei são acusados de desrespeitar os limites do devido processo legal.
Nos últimos dias, soube-se de que em Mato Grosso uma vaga no Tribunal de Contas custou R$ 4 milhões. No Amazonas, uma desembargadora foi afastada por vender decisões. Em Roraima, uma facção obriga os presos a pagar taxas em troca de proteção. Em Brasília, um ex-presidente da Câmara e um ex-ministro cobraram pedágio na liberação de créditos de bancos públicos. Uma das consequências desse processo é o sequestro da democracia – a captura dos mecanismos representativos. Há eleições periódicas, liberdade de organização partidária e muita propaganda. Podemos votar e ser votados, mas, dada a corrosão causada pelo peso econômico e pelo marketing eleitoral nas eleições, as alternativas ideológicas não se convertem em poder efetivo. Outra consequência é o desmanche da ordem jurídica, seja por meio do retrocesso do estado civil para o estado da natureza, como os motins nas prisões evidenciam, seja pela “venda” de MPs a empresas.
A constituição do Estado moderno pressupôs o monopólio da violência. Embora iguais segundo a própria natureza, nascidos em plena liberdade e dotados de paixão e razão, os homens vivem em permanente disputa pelo poder, estabelecendo um estado de guerra em que é recorrente o uso da violência para sua defesa – dizia Hobbes, no século 17. Se quiserem a paz, devem seguir a razão e firmar um pacto, abdicando de parte de sua liberdade e a entregando a um soberano revestido de poder e força, que terá a atribuição de assegurar a ordem pública – condição básica da sociabilidade. E, “sem a espada, os pactos não passam de palavras sem força que não dão a mínima segurança a ninguém” – concluía.
Manifestação cruel desse estado de guerra, o embate entre facções criminosas nas prisões é uma disputa pelo controle do tráfico no País. A desfaçatez de empreiteiras, “comprando” MPs para definir as bases legais das áreas em que atuam, é uma disputa pela apropriação dos gastos governamentais. É como se o poder público tivesse abdicado de suas atribuições, com o prevalecimento dos mais fortes – nos sentidos físico e econômico – nas prisões e em alguns meios empresariais. Cada vez mais inertes, as instituições só têm funcionado por causa das novas gerações de operadores jurídicos do Estado. Ao contrário das gerações mais velhas, que viveram sob uma ditadura e a insegurança da inflação, as novas gerações formaram-se em tempos de estabilidade monetária. Ao contrário das mais antigas, que viveram num País fechado, as novas são cosmopolitas. Fizeram intercâmbio e pós-graduação no exterior, o que refinou sua visão do Direito, permitindo-lhes ultrapassar as limitações do formalismo normativista e conscientizar-se de que a mediação dos tribunais nas discussões sobre políticas públicas envolve um jogo cujo centro é a disputa pelo sentido das normas e dos princípios. Graças a essa formação, identificaram a crescente hegemonia do Direito anglo-saxônico num mundo globalizado, em cujo âmbito o fundamento das decisões judiciais tende a ter mais peso que o texto das leis. Compreenderam que, nesse novo arcabouço jurídico, os direitos têm mais a forma de princípios que de regras, motivo por que sua interpretação exige ponderação, e não subsunção.
Por isso, neste cenário de deterioração institucional, é injusto afirmar que esses operadores estariam agindo de modo corporativo, exorbitando e comprometendo a governabilidade, inspirados pelo princípio latino fiat justitia pereat mundus (faça-se justiça mesmo que o mundo pereça). É apressado dizer que, por sacralizarem a ética e não terem projetos de reforma socioeconômica, estariam inviabilizando o processo de repactuação política, minando a democracia e colocando o País na antessala de um autoritarismo justificado em nome de uma redenção moral. Ainda que esse risco exista, as sugestões para conter o pessoal da Lava Jato não passam de iniciativas autodefensivas de quem teme a cadeia. Essas iniciativas só consolidam uma enraizada cultura de ineficiência, permissividade e apropriação do público pelo privado. A proposta de uma lei de abuso de autoridade e a tese de que na interpretação da lei a ponderação deveria ser proibida consistem no antídoto da democracia. Qual a garantia de que as cartas de desculpas, com base nas quais as empreiteiras prometem respeitar a lei, não sejam esquecidas? Se tudo pode ser invocado em nome da retomada do dinamismo econômico, como se lê naquele projeto e nessas cartas, a consequência é o enfraquecimento do primado da lei e da democracia. Quando o argumento da necessidade de sobrevivência de políticos e empresas é instrumentalizado para justificar a transigência com atos ilícitos, as instituições ficam comprometidas.
Como a Constituição já prevê medidas para conter operadores jurídicos que exorbitem de suas prerrogativas, é preciso advertir para o risco de que eventual enquadramento do pessoal da Lava Jato – neste momento enfraquecido com a morte do relator no STF, Teori Zavascki – impossibilitará a inculcação na consciência coletiva de que as leis têm de ser respeitadas por todos. Acima de tudo, frustrará os esforços desprendidos para acabar com os vícios da representação política e o sequestro da democracia. E dará sobrevida a autoridades ocultas que, por meio de departamentos de propinas, sempre mandaram ao largo das instâncias de expressão democrática da vontade popular, corroendo as fronteiras entre o interesse público e interesses particulares espúrios.
*PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP E PROFESSOR DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
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