Luiz Felipe Pondé:Folha de São Paulo
Passado o frenesi da indignação com o ocorrido nas prisões, podemos
pensar um pouco sobre aquele inferno. Digo de cara que não acredito na
indignação regada a queijos e vinhos.
Vamos dos argumentos mais óbvios (e nem por isso menos verdadeiros), aos
menos óbvios. Chegando mesmo aos que parecem obscuros aos
inteligentinhos.
Óbvios: o Estado brasileiro é canalha, irresponsável, os dirigentes
mentem, não estão nem aí para a vida dos presos (nem de ninguém),
prender todo mundo num cubículo de lata é querer que se matem, o crime
organizado cresce em meio ao vácuo do poder público, há uma crise no
sistema prisional, há corrupção, as autoridades não fazem diferença
entre um ladrão de galinha e um serial killer, pobre e preto sempre vai
mais preso do que branco coxinha. Tudo verdade.
Menos óbvios: esse tema dá aos foucaultianos um gozo que beira o orgasmo
porque Foucault achava que soltando os presos faríamos a verdadeira
revolução.
Será que ele alguma vez teve que encarar algum bandido querendo mata-lo?
O PCC chega mesmo a tirar lágrimas de alguns foucaultianos com sua
declaração de fundação regada a direitos humanos. Uma das razões que
torna muito do que os intelectuais falam risível é o fato de que vivem
uma vida muito segura em seus casulos corporativos em universidades
blindadas ao conhecimento e a qualquer tipo de risco.
Para foucaultianos sofisticados, os bandidos são vítimas da ordem social
repressiva e mostram em seu comportamento a doença social, por isso, os
trancamos nas cadeias para "esquecermos" de nossa patologia social.
Esse tom surgiu em algumas indignações, mas com um certo cuidado porque
essa moçada está um pouco assustada com a "revolta dos burros".
Quase obscuros: o que vem a ser essa "revolta dos burros"? Primeiro um
reparo geopolítico mais amplo. Com a vitória de Trump, a inteligência
pública começou a falar de novo em populismo. O segredo do Trump é ele
falar o que o povo americano "burro" pensa. Os "burros" que falam
inglês. A inteligência pública há muito tempo está alienada do "povo",
entrincheirada nas universidades e nas redações da mídia, falando sempre
a mesma coisa: "como esse povo é burro e fala que bandido bom é bandido
morto?"
A inteligência pública está de costas para o povo comum e preocupada com
sua carreira e seu sucesso nas redes sociais. Avancemos um pouco mais
nesses argumentos obscuros.
Pois é. Os populistas atuais crescem na mesma medida em que insistimos
em pensar que vivemos uma "revolta dos burros", mesmo que não digamos
dessa forma explícita. A inteligência está tão acostumada com queijos e
vinhos que esquece o tal do povo.
Os populistas crescem na mesma medida em que os "burros" sentem que o
sistema político profissional e os inteligentes não estão nem aí pra
eles. Por isso sentem que os inteligentes "só defendem os bandidos". Um
adendo: existe "burro" preto e pobre e "burro" branco e rico, ok?
Vamos "ouvir os burros" um pouco? Pelo menos imaginar que podemos ouvi-los.
Quem sabe essa "revolta dos burros" pode indicar algo importante por detrás?
Eu arriscaria dizer que esses "burros" se sentem abandonados pelo Estado
e pela inteligência pública de forma crassa no seu dia a dia.
Esquecidos em seus impostos, acharcados por uma burocracia assassina e
destruidora de qualquer iniciativa profissional que não seja apenas
viver de salário e "direitos trabalhistas", em suas filas da saúde e do
transporte público. Escolas são um lixo.
Andam com medo nas ruas. E não dá pra convencer ninguém que de fato pode
ser assaltado ou morto por um bandido de que Foucault tem razão e que
quando você é assaltado, você é o bandido, e o bandido é a vítima.
Risadas?
Abandonados a sua solidão de "cidadãos honestos" (atenção! Os
inteligentinhos acham que ninguém é mais honesto do que um traficante de
drogas), "os burros" sentem que seu esforço cotidiano para viver dentro
da lei, cuidando de suas famílias (mas que coisa mais classe média,
não?) não tem nenhum valor. E estão aprendendo a dizer o que pensam. Ai
virá a "revolta dos burros" de carga.
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