Gustavo Franco:
Publicado no Estadão
A responsabilidade pela catástrofe possui nome e
sobrenome. É fundamental que se tenha clara a natureza e extensão da
herança, para que as dores inerentes ao árduo trabalho de reconstrução
sejam associadas a quem produziu a doença, e não ao médico
Fez muito bem o Ministro da Fazenda, na verdade o presidente Michel
Temer, em propor ao Congresso a alteração da LDO (Lei de Diretrizes
Orçamentárias) de modo a refletir as cores exatas do cenário econômico e
fiscal que recebeu de Dilma Rousseff. É importante ter claro o legado
da presidente afastada, inclusive para se acrescentar elementos aos
julgamentos no Senado e diante da História.
O superlativo número de R$ 170 bilhões para o déficit primário no
exercício de 2016, conforme aprovado na semana que passou, foi chocante e
surpreendente para muitos. Mas é só um pedaço da história, e pequeno.
Note-se, para começar, que este número não é bem uma meta, mas uma
estimativa realista do que ocorrerá uma vez mantidas as coisas como
estão. É certo que as autoridades têm o dever de buscar um número bem
menor, mas é importante estabelecer com clareza o ponto de partida, e
também que há muita coisa que não entra nessa conta.
Vale lembrar que durante os dez anos anteriores a 2008 o resultado
primário médio foi um superávit maior que 3% do PIB. Esta lembrança é
importante para afastar a ideia que a Constituição de 1988 teria sido
culpada da deterioração fiscal recente. E também para que se tenha muito
claro que foi Dilma Rousseff quem transformou um resultado positivo
médio da ordem de R$ 190 bilhões (3% do PIB de 2016) em um negativo de
R$ 170 bilhões.
A deterioração fiscal comandada por Dilma Rousseff foi, portanto, de
R$ 360 bilhões, sendo este o tamanho do esforço fiscal que teria de ser
feito hoje para colocar o país de volta na situação onde estava no
período 1998-2007, quando houve crescimento, austeridade (ao menos
quando medida por superávits primários) e melhoria na distribuição de
renda.
São R$ 360 bilhões morro acima, só para arrumar o resultado primário.
Se colocarmos na conta os juros, os números se tornam ainda mais
perturbadores.
No ano de 2015, o Brasil foi o país cujo Tesouro Nacional mais pagou
juros no mundo: 8,5% do PIB, contra 4,62% na Índia, 4,11% em Portugal,
4,02% na Itália e 3,61% na Grécia.
Em moeda corrente, estamos falando de R$ 502 bilhões em juros em
2015, quando o déficit primário (o resultado sem contar juros) foi de
1,88% do PIB, equivalente a R$ 111 bilhões. Assim, neste ano, o déficit
total do setor público foi de 10,38% do PIB ou de R$ 613 bilhões.
A mesma lei que recém alterou a LDO estimou o déficit nominal para
2016 em 8,96% do PIB, ou seja, R$ 579 bilhões, dentro dos quais estão os
R$ 170 bilhões de que falamos logo acima. Estima-se que a conta de
juros neste ano fique parecida com a do ano passado. A ver.
Tudo considerado, com este déficit nominal, a projeção para a dívida
pública bruta ao final de 2016 é de 73,4% do PIB, uma alucinação.
E não pense que foi só isso.
Mesmo com o Tesouro entrando fortemente no vermelho, o governo
resolveu fazer outros gastos fora do orçamento, e que não entram nas
contas acima. Para tanto, transferiu cerca de R$ 500 bilhões para o
BNDES em títulos, em várias operações. Como se a sua empresa estivesse
dando prejuízo e você resolvesse se endividar para emprestar um valor
correspondente a metade do seu faturamento a uma subsidiária.
Nesta semana que passou, um pedaço desse dinheiro foi devolvido, vamos ver quanto vai custar para regularizar essa operação.
Além disso, temos também as operações “anticíclicas” da Caixa e do
Banco do Brasil, ordenadas explicitamente pelo governo. A quem
pertencerá o prejuízo decorrente dessas atuações? Que tamanho tem essa
conta? E as operações feitas com o dinheiro do FGTS?
Não seria bom ter um corte e uma análise circunstanciada do estado dessas instituições nesse momento de transição e reflexão?
E as necessidades de capitalização da Petrobras decorrentes da
devastação a que foi submetida em consequência das insanidades
heterodoxo-nacionalistas adotadas pelo governo afastado, e pela pilhagem
engendrada pela quadrilha que ali se instalou?
A dívida de Petrobras cresceu a tal ponto que o fluxo de caixa
descontado da empresa para o horizonte relevante de avaliação está
zerado, ou pior, a depender do preço do petróleo nos próximos anos.
Basta olhar os relatórios de analistas externos da empresa, todos
acordes nesse terrível diagnóstico.
Isso mesmo, você não entendeu mal, a empresa está tecnicamente
quebrada, funcionando da mão para a boca, um dia de cada vez,
terrivelmente necessitada de um aumento de capital, ou da venda de
ativos, de cortes dramáticos e providências difíceis. Uma empresa deste
tamanho, ainda mais estatal, não pode entrar em recuperação judicial,
não sem provocar um problema sistêmico.
Mas, antes de pensar no conserto, que se registre a façanha: poucos
anos depois do apogeu representado pela descoberta do pré-sal e do
aumento de capital em Nova York em 2010, quando a companhia captou US$
70 bilhões na maior operação da espécie jamais registrada neste planeta,
Dilma Rousseff conseguiu colocar a Petrobras a meio centímetro da
recuperação judicial. Que portento em matéria de incompetência
administrativa, imprevidência estratégica e desonestidade mesmo, esta
última, inclusive, reconhecida oficialmente no balanço.
Fará bem o novo presidente da Petrobras em ter muito claras as
condições da empresa no momento em que assumir as suas
responsabilidades.
A mesma recomendação vale para a presidente do BNDES, para o qual já
se decidiu devolver R$ 100 bilhões dos R$ 500 bilhões que recebeu do
Tesouro. O banco deve ser capaz de demonstrar onde foram os recursos, e
talvez mesmo pagar o Tesouro com esses ativos. E, se houver prejuízo,
que seja declarado e explicado para que as culpas pertençam a quem de
direito.
Como foi acontecer uma tragédia deste tamanho?
É claro que temos de refletir muito sobre as brechas na Lei de
Responsabilidade Fiscal, e sobre o mau uso das empresas estatais, seja
para propósitos políticos, para a corrupção, ou para simplesmente
financiar e acobertar o populismo fiscal.
Mas nem por um segundo devemos esquecer que a responsabilidade pela
catástrofe possui nome e sobrenome e que o Senado não estará se
debruçando apenas sobre “pedaladas”, “jeitinhos” ou decretos feitos por
assessores descuidados, mas sobre o maior descalabro fiscal que a
história econômica brasileira registra desde, possivelmente, quando Dom
João VI abandonou o país em 1821 e rapou o ouro que havia no Banco do
Brasil.
E não por acidente as quedas no PIB do biênio 2015 e 2016, que se
espera que atinjam 3,8% e 3,8%, ultrapassam o que se observou nos anos
da Grande Depressão, 1930-31, quando as quedas foram de 2,1% e 3,3%.
É fundamental que se tenha clara a exata natureza e extensão da
herança, para que as dores inerentes ao árduo trabalho de reconstrução
financeira e fiscal do crédito público sejam associadas a quem produziu a
doença, e não ao médico.
extraídadeaugustonunesveja