por José Nêumanne
A transformação de estepe em poste de Lula em cadeia nacional, na
primeira sabatina a que se submeteu na televisão comercial como
candidato a presidente da República, foi uma excelente oportunidade para
o público já enfronhado nas circunstâncias reais que impediram a
candidatura do ex conhecer os dotes que fizeram o substituído escolher o
substituto.
Os entrevistadores William Bonner e Renata Vasconcellos usaram grande
parte dos 27 minutos que lhes couberam da entrevista ao vivo para cobrar
do professor da Universidade de São Paulo (USP) algo que se
assemelhasse a uma autocrítica. Essa estratégia, como se sabe, é um
antigo truque retórico de engodo da opinião pública, useiro e vezeiro em
partidos comunistas, ao qual, aliás, nunca aderiu o Partido dos
Trabalhadores (PT), que se diz socialista, mas sempre foi inimigo de
comunistas. Agora Fernando Haddad, que nos redutos petistas do Brasil
profundo é chamado de “Andrade”, revelou que o partido se dispõe a
adotar a autocrítica dos outros para com ela conseguir o efeito supremo
de transferir para adversários crimes dos quais seus correligionários
são acusados pela polícia e pelo Ministério Público e severamente
apenados pelos juízes de primeira e segunda instâncias. Não é
propriamente uma inovação, muito menos uma surpresa, mas não deixa de
revelar uma estratégia de simulação, no mínimo, interessante, embora não
se saiba quando e se produzirá efeito.
A oportunosa ensancha foi dada ao poste petista por um adversário de alto coturno. No sábado, o Estado publicou
entrevista exclusiva do repórter de política Pedro Venceslau, enviado
especial a Fortaleza, na qual o ex-presidente nacional do Partido da
Social Democracia Brasileira (PSDB) e presidente do Instituto Teotônio
Vilela, da mesma legenda, Tasso Jereissati, fez uma autocrítica em regra
das atitudes de seus aliados. Na entrevista, o “Galego”, como é
conhecido pelos íntimos, soltou a língua, com a qual despejou fogo amigo
de matar de inveja qualquer dragão.
De início, vituperou correligionários que recorreram à Justiça Eleitoral
para exigir a recontagem dos votos na eleição de 2014, pondo em dúvida o
triunfo dos adversários Dilma Rousseff e Michel Temer. Na opinião de
Jereissati, notório adversário de Lula e irmão de um dos maiores amigos
do desafeto, Carlos, dono do Shopping Center Iguatemi e da La Fonte, o
pedido de recontagem afronta a democracia. Além disso, o cearense não
poupou ferinas condenações à adesão do PSDB ao governo de Michel Temer
logo após o impeachment de outro poste de Lula, Dilma Rousseff. Haddad
seria um tolo se não usasse as mágoas fratricidas do adversário. E, como
se sabe sobejamente, tolo Haddad não é.
Então, para defender a correligionária Dilma, o “Andrade” recorreu ao
fogo amigo de Tasso para retirar dela a pecha de ter sido o pior
presidente da História de nossa insana República. Nessa teoria
econômica, digna de um prêmio qualquer das Nações Unidas, a mais nova
simpatia ideológica do petismo condenado por corrupção, a “púcara
búlgara” (apud Campos de Carvalho) tinha tudo para surfar na onda de sucesso e benfeitorias do antecessor, papai Lula.
Mas sucumbiu às pautas-bomba aprovadas no Congresso por seu ex-vassalo
e, depois, inimigo Eduardo Cunha, do “quadrilhão” do PMDB, hoje MDB, só
para atender aos interesses do grupo do então vice-presidente, que, como
se viu, conspirou para tirar a titular da chapa do poder e assumir o
trono presidencial, naquilo que a petista Fátima Bezerra chamou de
“gópi”. E mais: aproveitou-se Haddad, oportunista como um ponteiro de
rede para fazer um ponto sem bloqueio na quadra de vôlei da política:
sôfregos por poder, os derrotados tucanos lambuzaram-se do mel
republicano aderindo ao “golpista” Temer.
A semana ainda não tinha começando quando o tucano de alta voltagem
respondeu ao atual poste lulista com um truísmo arrebatador: “Usou uma
reflexão honesta para proselitismo político”. Não sabe de nada o
inocente! Político, filho de politico, empresário, herdeiro de fortuna
paterna, o tucano do Ceará descobriu o Brasil de bicicleta, como dizem
na Praça do Ferreira e na Praia de Iracema. Político que não usar
deslize sincero de adversário como argumento de palanque está convidado a
mudar de profissão com urgência. O caso é que Tasso não é bem um
inocente, pois fez fogo amigo na cabeça de Geraldo Alckmin para ajudar
um aliado de velhos tempos, Ciro Gomes, a chegar ao segundo turno numa
disputa que parece fadado a ter com Jair Bolsonaro. Mas como tucano
guarda balas especialmente para disparar no próprio peito, Tasso
forneceu munição a Haddad, em movimento de subida nas pesquisas,
enquanto Ciro afunda, vítima, como sempre, do próprio temperamento,
digamos, mercurial. Ou seja, a bala entrou no rol das perdidas, num dos
vários sentidos da palavra.
Tasso tinha meia razão. O pedido de recontagem de votos foi estúpido,
mas em nada deslustrou a democracia. Num processo julgado no Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) surgiram inúmeras provas de que o pleito de
2014 foi fraudado. E pior: por vencedores e vencidos. Então, a
autocrítica do tucano omitiu evidências de recurso dos correligionários
ao propinoduto da Odebrecht. Dilma deve ter tido mais votos do que Aécio
Neves, mas isso não se deveu apenas ao apoio do padim Lula.
Sem a presença na chapa de Michel Temer, levando a capilaridade do PMDB
da época, madama talvez não tivesse sequer chegado ao segundo turno.
Mas a sede de vingança do cearense impediu que ele aproveitasse seu
sincericídio para constatar o óbvio. A “reflexão honesta” do antecessor
de Ciro no governo do Ceará foi, então, no mínimo, incompleta. Se não
ressuscitasse a candidatura de cachorro morto do ex-governador paulista,
poderia pelo menos contribuir para a História.
A parte que Haddad acrescentou na sabatina no Jornal Nacional,
contudo, não se limitou à tentativa de explicar como bonança a
tempestade sob Dilma. Ele foi além.Primeiramente, reconheceu que, de
fato, alguns petistas abusaram do acesso aos cofres do poder. Mas muitos
dos que foram condenados (certamente o caso de Lula, que ele não citou)
são mesmo vítimas do “abuso de poder” de policiais, procuradores e
juízes federais, facilitado pelas delações premiadas. Uma versão
desmente a outra, mas “Andrade” nunca teve mesmo compromisso com a
lógica…
E, em segundo luar, além de confirmar a frase de Jean-Paul Sartre (em Huis Clos)
segundo a qual “o inferno são os outros”, o preposto estepe que virou
poste sem luz atribuiu sua derrota humilhante na eleição de 2016 à
indução dos eleitores ao erro, da parte dos autores de pautas-bomba no
Congresso e aproveitadores do “gópi”. Vamos aqui agora abrir parêntesis
para a trajetória política curta e inglória de um professor da
Universidade de São Paulo que resolveu tornar-se valet de chambre de
seu líder, patrono e senhor, Lula da Silva. O ex-ministro de Educação
não teve pejo em alardear seus feitos na pasta – Fies, Pró-Uni e outros
adereços de marketing – no dia em que as Nações Unidas (que o PT agora
não pode desqualificar) divulgaram seu Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH). O Brasil ficou abaixo da Venezuela, estagnado em 79.º lugar. E
isso não se deu por causa da recessão – segundo ele, de Cunha, Temer e
PSDB ─, mas pela educação.
Voltando à narrativa, o PT protagonizou com os aliados e ainda com a mão
amiga da oposição de fancaria do PSDB a maior rapina dos cofres
públicos da História, mas a culpa, conforme o mais novo contador de
lorotas pseudo-históricas de palanque e debate, é de Satanás (apud Sartre).
E o fato de ele ter tido menos votos do que a soma dos nulos e em
branco na eleição municipal paulistana de 2016 deveu-se à burrice do
povo, que o fez naufragar em todos os bairros periféricos da maior
cidade do País. Ou melhor, da incapacidade que o brasileiro comum tem de
resistir às ficções que a canalha política inventa para ludibriá-lo.
Assim, ficamos sabendo por que Haddad e outros asseclas do presidiário
mais célebre e celebrado do Brasil insistem em fantasias absurdas, tais
como a injusta perseguição de um criminoso corrupto e lavador de
dinheiro, que pretende votar e ser votado numa “cela de estado-maior”,
que, ninguém sabe por quê, não é trocada por uma prisão de verdade, em
que hoje cumprem pena pobretões, operadores do PT e empreiteiros
corruptores.
O Estado de São Paulo
extraídaderota2014blogspot
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