por Fernando Gabeira
De novo na estrada, no centro de Minas, a 700 quilômetros do Rio. Deixei
um clima político bastante polarizado. A série de entrevistas com
candidatos mostrou como o mesmo trabalho pode parecer contrário ou a
favor do entrevistado, dependendo do ângulo do espectador.
Eu mesmo fui criticado por não ter respondido ao general Mourão sobre
heróis e tortura. As pessoas talvez desconheçam a fronteira entre uma
entrevista e um debate.
Como jornalista, ouço as pessoas, registro no meu caderno ou gravo as opiniões colhidas.
Às vezes, refaço a pergunta, apenas para obter mais transparência nas ideias e projetos.
Quando a entrevista é em conjunto, trata-se de um ritual coletivo que
tem como objetivo oferecer uma visão mais completa do personagem, dentro
de um determinado prazo.
Se alguém diz “heróis matam”, não posso contestá-lo. E se o fizesse,
diria apenas que heróis também matam, a julgar pela História, inclusive
da esquerda e das lutas anticoloniais.
Heróis morrem pela liberdade, ora lutando pelos irmãos de cor, como
Martin Luther King, ora pela paz, como Mahatma Ghandi. Herói apenas
salvam vidas, como a professora Helley Abreu, na escola incendiada em
Janaúba.
Às vezes, heróis não matam nem morrem. Simplesmente dedicam-se a ajudar os outros.
Conheci Noel Nutels no aeroporto de Belém, e ele me contou como cuidava dos índios,
sobretudo de seu pulmão. Fiquei impressionado com ele até hoje. Isso tem mais de meio século.
Não conheci Nise da Silveira pessoalmente. Mas quando vi o que fez pelos
doentes mentais, livrando-os do choque elétrico e despertando sua visão
estética, compreendi que sua vida também teve um grande propósito.
Quanto à tortura, sou bastante tranquilo ao condená-la. Hoje, o Brasil
subscreve acordos internacionais que a varrem de nossas práticas
cotidianas. Não significa que cessaram: apenas são ilegais.
Ao defender a tortura em nome de grandes ideais, a direita cai na mesmo
equívoco da esquerda. Adota o lema: os fins justificam os meios.
Na minha cabeça, essas coisas são claras. Como tenho a possibilidade de
me expressar por artigos e uma longa existência por trás de cada
opinião, estou à vontade percorrendo o Brasil, ouvindo as pessoas.
Não me importam se racionais, sensatas, delirantes ou alucinadas: gosto
de ouvi-las. O alívio de voltar a elas se deve à sua leveza e
complexidade. Uma leveza que não atrai torcidas contra ou a favor, como
um candidato. E uma complexidade que não nos seria possível antever, se
Shakespeare fosse um escritor com viseiras ideológicas.
Não acho que valha a pena agora uma discussão sobre 1964 ou sobre a Guerra do Paraguai. O agora é muito delicado.
Esta semana tentei usar a França para formular uma hipótese. Lá, depois
de um período de barricadas de esquerda, sobrevém um governo de ordem.
De Gaulle venceu as eleições depois do Maio de 68. A tendência no Brasil
foi a do fortalecimento de uma visão que deseja ordem e seriedade na
condução do governo.
Minha dúvida ainda se apoia nessa referência à França. De Gaulle
representava um tipo de autoridade. Le Pen e sua filha Marine, da
extrema direita, apenas chegaram ao segundo turno das eleições. A
ascensão de seu movimento não foi suficiente para ganhar o governo.
Sei como é precário comparar um país com outro. Mas o que posso fazer, senão usar também algumas memórias?
Ninguém sabe do futuro. É possivel usar como exemplo a vitória de Trump.
Mas ele tinha uma condição especial: milionário, apoiado por uma rede
de TV, integrado, com um pouco de desconforto, num grande partido.
O que restou dessa passagem mais longa pelo Rio, respirando o clima
eleitoral, candidatos, equipes, planos, sai um pouco apreensivo.
O clima de radicalização está levando as pessoas a lerem apenas notícias
com as quais concordam. Cerca da metade das intervenções na rede negava
a facada em Bolsonaro. Se continuarmos assim, abrigados em tribos,
acreditando apenas no que queremos acreditar, será cada vez mais difícil
a vida de quem não habita os extremos.
Para os intelectuais, é um perigo de morte. Se você acha que sabe tudo,
que tem a correta visão do mundo, não precisa ler os outros, confrontar
argumentos, corrigir erros, a tendência é a fossilizacão.
E nem para os fósseis a vida está fácil no Brasil, Luzia que o diga.
O Globo
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