por Roberto Romano
Crises exigem observar com desconfiança as instituições que regem o
trato dos cidadão com os Poderes. Usemos justas aspas nas antífonas do
pensamento raso expresso em universidades, mídia e opinião pública. Não é
fato que no Brasil “as instituições funcionem normalmente”. A menos
que, por normalidade, se designe a teratologia a que o País se
acostumou. Tal clichê namora o absurdo. Como poderia viver segundo
normas um país onde administradores não prestam contas dos recursos
financeiros, humanos e técnicos a seu dispor? Pode ser normal uma terra
onde parlamentares legislam descaradamente em causa própria? Normal um
Estado cujos magistrados causam bilhões de prejuízo ao erário e buscam
acrescer substanciosas remunerações e privilégios? Normal um sistema de
Poderes divorciado da cidadania, em que quem deve servir serve a si
mesmo e humilha os contribuintes? Ora, senhores, silenciem o mantra da
“normalidade”, encaremos o monstruoso: sob o manto democrático impera na
política, nas finanças públicas, na polícia e nos tribunais o arbítrio
mesclado à demagogia.
Tomemos a política injusta exposta por Jean Bodin. No poder tirânico “o
governante, pisando as leis da natureza, abusa da liberdade dos
governados como se eles fossem escravos, e dos bens de outrem como se
fossem seus” (Seis Livros da República, livro 2, cap. 4). Adianta o
jurista: entre as prioridades tirânicas está o aumento de impostos.
Tiranos, arremata, assumem slogans (devises) belos e títulos divinos,
mas a diferença entre eles e o governante justo é que o segundo labuta
pelo bem público, mas eles cuidam apenas do seu proveito privado. O
Supremo Tribunal Federal (STF) exige para si o título divino: protetor
da Constituição! Mas a sua história mostra que, não raro, o suposto
protetor se transforma em aliado da alcateia. Ocorre nele a metamorfose
narrada por Platão, autor realista que narra a origem da tirania. Numa
situação política injusta surgem “denúncias, processos, lutas de uns com
os outros, em grande número. O povo tem o costume de pôr uma pessoa
qualquer à sua frente, para o desenvolvimento de sua grandeza. A tirania
se origina da semente daquele protetor”. Platão retoma um mito: “Quem
provar vísceras humanas, cortadas ao bocados no meio das de outras
vítimas, é forçoso que se transforme em lobo”. Uma técnica predileta do
lobo/tirano é aumentar imoderadamente o fisco “para que os cidadãos,
empobrecidos pelo pagamento de impostos, serem forçados a tratar do seu
dia a dia e conspirem menos contra ele” (República, 565a- 569a).
A metamorfose do protetor em lobo inspira o pensamento jurídico do
Ocidente. É impossível entender a doutrina hobbesiana sobre o estado de
natureza, em que o homem é o tirano do homem, sem a base platônica.
Maquiavel dela se nutriu de modo evidente para quem o estuda com rigor. A
tese de Jean Bodin lhe deve o peso heurístico e a força política. O
tirano, fulmina Platão, usa um filtro fatídico para triar pessoas. Nele
os bons são retirados e os péssimos, mantidos. A purga efetivada pelos
médicos é invertida: os humores doentios permanecem – a gentalha que
apoia o arbítrio e a violência oficial – e os humores saudáveis são
expelidos – os honestos. Desconheço análise mais dura sobre a
instauração dos governos ditatoriais. Quem pretende lutar pelas
liberdades públicas deve manter Platão na cabeceira.
Volto ao STF. É óbvio que um juiz, sobretudo na mais alta Corte, deve
receber paga que o livre da precariedade financeira. Trata-se de
condição básica para a sua independência. Sempre lutei por tal
prerrogativa dos magistrados (cf, entre muitos textos meus, O Executivo é
um buraco negro que tende a dissolver a autonomia dos Magistrados, em
Judicatura, Informativo da Associação dos Magistrados de Pernambuco, Ano
XVI, n.º 6, pág. 5). Atenção: mesmo os recursos lícitos vêm dos bolsos
exangues dos contribuintes, não do plano celeste, como se maná fossem.
Se além da justa remuneração o magistrado exige privilégios
(auxílio-moradia e outros), já estamos sob domínio do lobo que provou
sangue humano ao índice de 16%. Ainda temos a remota possibilidade de
tal regalia ser barrada no Congresso Nacional. Mas os parlamentares, de
certo modo, sabem que estão à mercê das togas, sobretudo após operações
judiciais e de polícia que podem enterrar seus mandatos. O recado
subliminar é sempre bem entendido pelos imprudentes representantes do
povo (“ Sua Excelência”, no estranho discurso da presidente Cármen
Lúcia).
O tirano usa como técnica para dominar a cidadania, paralisando-a, o
aumento implacável de impostos. Os contribuintes, atormentados pelas
dívidas, pelo desemprego, pela ausência de serviços públicos, de escolas
ou hospitais, não têm espaço e tempo para vigiar os representantes e
“protetores”. Os 63 mil assassinatos recentes, cadeias fétidas que
servem como escolas de criminalidade somam-se ao fechamento de
laboratórios científicos, humanísticos e técnicos. Na hora em que o STF
concede a si mesmo o aumento privilegiado, bilhões são extraídos da
Capes, do CNPq e de todas as agências de financiamento de pesquisa. Para
além da lambida no sangue de quem paga impostos, o líquido vermelho é
sorvido em baciadas a cada instante mais generosas.
Não é apenas o STF a beber o líquido rubro. No mesmo dia em que se
anunciou o aumento de 16% para o Supremo e anexos (rombo presumido de R$
4 bilhões nas contas públicas no próximo ano), deputados, num lobismo
explícito, aumentam a receita do setor ruralista em R$ 14 bilhões,
dívidas a serem perdoadas. Um modo lamentável de usar os bens dos
governados como se fossem dos parlamentares.
Chego ao ponto inicial do presente texto: senhores, as instituições
políticas e jurídicas brasileiras não funcionam “normalmente”. A não ser
que o conceito de normalidade seja a definida na fábula de Esopo sobre o
cordeiro e o lobo. Para bom entendedor, uma vírgula basta.
*PROFESSOR DA UNICAMP, É AUTOR DE ‘RAZÕES DE ESTADO E OUTROS ESTADOS DA RAZÃO’ (PERSPECTIVA)
O Estado de São Paulo
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