por Fernando Gabeira
Até hoje não se sabe ao certo se a frase foi dita ou não. Em 1962, no
auge da guerra da lagosta, o general De Gaulle teria afirmado que o
Brasil não é um pais sério. Não havia, na época, rede social como
conhecemos hoje. Ainda assim, a frase foi tema de amplos debates.
Jamais conversei sobre o tema com o amigo Luís Edgar de Andrade, que
teria enviado a notícia de Paris. Muita gente afirma que a frase de De
Gaulle jamais foi dita. Vou tomá-la como verdadeira porque esta semana,
ao ler “Lições dos mestres”, de George Steiner, creio que posso fazer
uma nova leitura da frase.
A França foi humilhada em 1870 e 1871 pela derrota diante dos alemães. E
o país se descobriu ávido de “seriedade”. A constatação mais
importante: a vitória prussiana não dependeu de superioridade bélica,
mas sim de uma escolaridade sistemática, que a colocava à frente em
ideias científicas e humanísticas.
O Gymnasium alemão, as universidades depois das reformas de Humboldt, os
padrões de qualidade das pesquisas e publicações eruditas deixaram
expostos a frivolidade e o amadorismo francês. Alexandre Dumas, em 1873,
escreveu: “já não se trata mais de ser espirituoso, leve, libertino,
zombeteiro e alegremente inconsequente. A França deve agora haver-se com
o ‘muito sério’. Caso contrario, sucumbirá.”
Evidentemente, a França conseguiu dar a volta por cima, na época,
modernizando seu ensino. De Gaulle, como conhecedor profundo da história
de seu país, possivelmente estaria pensando nessa definição de sério,
quando se deparou com as vacilações burocráticas do governo brasileiro.
Mesmo que a frase não tenha sido dita e existam enormes diferenças entre
a França do fim do século XIX e o Brasil de hoje, De Gaulle poderia ser
reinterpretado na sua definição de país sério.
Não fomos derrotados pelos alemães, mas por nós mesmos. Mas, certamente,
o caminho de nos tornarmos um “pais sério” passa pela educação.
Reconheço que a ideia de virar um “pais sério” assusta. Afinal, o Brasil
é leve e alegre. Um candidato com esse objetivo estratégico tende a ser
mal interpretado.
Há razões para isso. Costumo citar uma frase de Samuel Beckett: não se
passa um dia sem que algo seja acrescido ao nosso saber. A Bíblia tem
algo parecido no Eclesiastes 1:18: “aquele que aumenta o seu saber,
aumenta o seu pesar.”
Mas creio que Beckett chegou à conclusão por conta própria. Como Freud,
ao afirmar que civilização entristece porque depende da repressão aos
instintos. Mas nada disso significa um elogio à ignorância. No caso
brasileiro, o clima e a natureza são fatores que garantem uma dose de
leveza e alegria.
Será que os candidatos querem mesmo fazer do Brasil um país sério? Não
fomos arrasados por uma guerra, mas a confiança está num nível muito
baixo.
Uma grande virada na educação, não apenas humanística, mas científica e
tecnológica, pode ser o grande objetivo nacional. Enquanto isso não
acontece, passaremos nossos dias sobressaltados com pesquisas
eleitorais, tentando adivinhar de que lado virá o desastre.
Certamente, os candidatos falam no tema, têm planos. Mas se colocam como
alguém que pretende trabalhar e têm, na ponta da língua, os principais
tópicos de seu programa. Eles se apresentam como prestadores de serviço.
Raramente, se colocam como líderes que vislumbram uma trilha e propõem
conduzir a sociedade por ela.
Pelo menos, fica essa possível sugestão de De Gaulle, que já encontrou a
França com o problema educacional resolvido, e a conduziu pelos
difíceis caminhos na guerra e depois dela.
No sentido que dou à sua possível frase, não há nenhuma ofensa, nada que
possa agitar nossas inquietas redes sociais. É apenas um rumo, direção
para o esforço coletivo, uma constatação de que temos diante de nós um
problema que pode nos fazer sucumbir, como dizia Dumas.
Apesar da enorme importância da infraestrutura, dos investimentos na
saúde e na segurança pública, nada disso nos tira do pântano se não
compreendermos que o Brasil precisa se tornar um país sério, reconhecer a
educação como a sua grande derrota.
Não faltou quem se lembrasse disso ao longo dos anos. Ouvimos,
concordamos, mas, no calor da história, simplesmente deixamos de lado.
O Globo
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