por Fernando Gabeira
Estou em Boa Vista, pela quarta vez visito a fronteira Brasil-Venezuela.
No princípio era apenas um aviso de que algo poderia sair do controle.
Nas últimas viagens, era uma certeza.
O chamado socialismo do século 21 foi pro espaço. Seus estilhaços caem
dentro do território brasileiro, na forma de onda migratória, crise
energética, revolta e violência. Logo no Brasil, arruinado por uma
experiência de esquerda e hoje governado pelos parceiros eleitorais do
PT.
Não sei se isso vai repercutir na campanha eleitoral brasileira. É tudo
tão longe. E aqui não temos o hábito de avaliar criticamente o passado. A
esquerda comporta-se como se nada tivesse acontecido. Sua proposta
nostálgica é uma viagem ao início do século, voltar a ser feliz.
Não se discute o processo de democratização, sua esperança de usar o
Estado para a redução das desigualdades, superar por meio de uma ação de
governo todos os grandes problemas do País. A própria Constituição foi
escrita nessa ânsia de promover a justiça social, com juros limitados a
12% e uma previsão de imposto sobre grandes heranças. Ficou no papel,
mas revela um pouco do espírito da época, que acabou encontrando sua
maior expressão no governo de esquerda.
Ainda hoje, a ilusão de que o governo vai resolver todos os grandes
problemas sobrevive. Os próprios candidatos revelam seus programas,
dizem o que vão fazer em cada área, como se estivessem vendendo o
serviço que nos prestarão.
Há pouco espaço nesse tipo de discurso para a participação social,
exceto consumir bens e serviços. O PT, por exemplo, tende a igualar
felicidade ao aumento de consumo. Um bom exercício para seus militantes
seria, por exemplo, refletir sobre esta questão: muita gente diz que
votaria em Lula, mas quase ninguém, exceto CUT e MST, se mobiliza para
tirá-lo da cadeia.
Minha hipótese é de que todos recebem bem a ideia de aumento de consumo,
mas poucos se interessam por valores. No caso de Lula, pode até ser que
não se movam baseados num valor: o respeito à independência da Justiça.
Mas se isso é verdade, como explicar sua opção eleitoral?
Parto da esquerda para avançar no espectro e constato que a maioria dos
candidatos se apresenta como alguém que vai realizar inúmeras tarefas,
como se estivesse vendendo seus serviços a clientes cuja única missão é
comprá-los. Dificilmente mencionam nos debates o papel que destinam à
sociedade na grande tarefa da reconstrução. Basta votar certo, isto é,
no orador, que tudo se vai resolver a partir do esforço e competência
dele.
O interessante, sem querer criticar os candidatos, pois os tempos são
duros, é que se apresentam como aspirantes a um cargo e prometem
trabalhar bem. Mas não ousam exercer uma liderança, definindo as tarefas
conjuntas de governo e sociedade. No momento em que a hipótese de
interação aparece na campanha, ela é inadequada e, ainda assim,
respondida com a tradicional afirmação: isso é tarefa do governo e não
devemos envolver as pessoas.
Refiro-me à proposta de Jair Bolsonaro de liberar a compra de armas. É
possível afirmar que não é o melhor caminho, mas com outro argumento: o
de que a participação da sociedade deve focar a informação, a autodefesa
com a ajuda da tecnologia, celulares, aplicativos.
Sempre vai aparecer alguém para dizer: e se um assaltante entra na sua
casa, armado, de que adianta o telefone celular? De fato, nessa
circunstância há pouco a fazer. Mas dentro de uma outra perspectiva,
câmeras, vizinhos antenados, sistemas de alarme, tudo isso pode fazer um
estranho ser detectado antes de entrar numa casa. É apenas um exemplo,
até prosaico, para indicar a sensação de lacuna que sinto na campanha.
A sociedade brasileira teve esperanças e ilusões. Elas se perderam no
caminho. Mas precisam de alguma forma ser renovadas.Um escritor espanhol
costumava dizer que uma sociedade sem esperança e ilusões é como um
monte de pedras na beira de um caminho. O que às vezes os candidatos
parecem dizer é isto: reconheço seu ceticismo, mas vou trabalhar muito
bem e quando concluir minhas tarefas o País estará novamente de pé.
O que a esquerda propõe é renovar as esperanças num projeto fracassado.
Por seu lado, a direita nos remete ao dístico da bandeira: ordem e
progresso. Ordem com uma política de segurança rígida e progresso por
meio de uma economia liberal.
Uma simples frase inspirada no positivismo não é capaz de abarcar a
complexidade do momento. Mesmo porque o progresso hoje é visto também
com desconfiança, num momento em que as ameaças ao planeta se tornam
visíveis. Progresso para continuar ou acabar com a sobrevivência humana.
O próprio conceito de ordem não se limita à segurança pública. A
corrupção é uma desordem, o gasto irracional da máquina do governo é
outra, assim como obras inacabadas, vulnerabilidade biológica com o
colapso da saúde pública.
Reconheço que é muito difícil sintetizar num slogan uma saída para o
Brasil. No passado, quando se tratava apenas do progresso, Juscelino nos
propôs avançar 50 anos em 5. Tenho a impressão de que agora, num
momento eleitoral, é preciso falar de crescimento para 13 milhões de
desempregados.
Mas creio que cada vez mais amadurece entre as pessoas a hipótese de que
a educação pode ser o motor dessa nova fase nacional. Seria preciso
alguém afirmando que, além de suas tarefas presidenciais, nos levaria a
uma sociedade mais bem educada, alguém que propusesse essa nova
esperança, acreditasse mais na sociedade do que no próprio governo e a
liderasse para esse objetivo.
Por enquanto, os candidatos hipnotizam com suas propostas. Não se
preocupam em mobilizar, dividir papéis. Nesse sentido, é uma campanha
analógica, embora, paradoxalmente, tenha invadido as redes sociais.
Como ela está no começo, merece o benefício da dúvida: são reflexões provisórias.
JORNALISTA
O Estado de São Paulo
extraídaderota2014blogspot
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