por Carlos Alberto Sardenberg
Angela Merkel foi obrigada a endurecer a política de imigração para
salvar a coalizão que sustenta seu governo. A chanceler alemã está na
centro-direita liberal, com o partido União Democrata-Cristã. Sua
liderança foi essencial para desenvolver em toda a União Europeia um
ambiente multilateral, democrático e livre, de fronteiras abertas. Não
por acaso, a Alemanha é o país europeu que mais recebe imigrantes.
Recebia.
Merkel está perdendo espaço para o partido mais à direita de sua
coalizão, a União Social Cristã, dominante na estratégica Baviera, que
exige praticamente o fim da imigração e ameaça deixar o governo. Como
isso levaria à sua derrocada, Merkel topou um acordo. Imigrantes que
tentarem chegar à Alemanha, depois de terem entrada na Europa por outro
país, serão detidos e deportados.
Isso se aplica sobretudo à fronteira com a Áustria, cujo governo é uma
coalizão bem mais à direita. E que reagiu. Se a Alemanha mandar de volta
os imigrantes que chegarem pela Áustria, o governo austríaco diz que
fará exatamente o mesmo, ou seja, os mandará de volta para Itália e
Eslovênia, de onde chega a maioria. E estabelecerá controles rígidos em
todas as fronteiras, inclusive para os europeus.
O governo da Itália, um porto de acesso de pessoas que fogem
especialmente da África, informou que não pode aceitar nem um imigrante a
mais e que pretende, ao contrário, reduzir o número dos que já estão
lá.
Essa atitude é uma onda que se espalha pela Europa, um avanço das direitas não liberais.
É um contraste total com o que se vê nos jogos da Copa do Mundo. A Copa é
uma síntese da globalização em todos os sentidos, e mais especialmente
quando se trata da União Europeia. Os times em campo refletem o
multilateralismo, da livre circulação de pessoas, jogadores no caso, ao
livre mercado dos clubes (empresas) e, sobretudo, ao livre trânsito e à
comunhão de ideias.
Todos os times da União Europeia incluem descendentes de africanos. Até a
cada vez mais fascista Áustria (que não foi para a Copa) tem negro no
seu time.
Isso resulta de uma política de imigração liberal.
Há mais. Considerem um dos artilheiros, Romelu Lukaku. Seus pais são
congoleses, ele nasceu em Antuérpia, joga, pois, pela seleção belga, mas
exerce sua profissão na Inglaterra, titular do Manchester United.
Temos aí a imigração e a livre circulação de profissionais dentro da
União Europeia. Os casos se repetem. Conhecem Samuel Umtiti? Nasceu em
Camarões, foi para a França, lá ganhou a cidadania, joga pela seleção
francesa, e sua carteira de trabalho é assinada pelo Barcelona da
Espanha.
Os clubes da União Europeia são a origem da maior parte dos jogadores da
Copa. Só o campeonato inglês, a Premier League, ofereceu 107 jogadores
para os times que estão na Rússia.
No começo dessa globalização, havia resistência no mundo do futebol. Era
um nacionalismo rasteiro como em outras áreas da sociedade. Dizia-se
que os estrangeiros tomariam a vaga de jogadores locais, com isso
prejudicando o desenvolvimento do futebol nacional. Mais ou menos como
dizer que a indústria nacional só sobrevive se for protegida da
competição externa.
É o contrário, como o provam as seleções dos países que mais abriram o
seu futebol — como a Espanha. Os craques estrangeiros trazem qualidade e
evolução aos locais.
Assim como os técnicos, protagonistas da livre circulação de ideias —
táticas de jogo, no caso, claro. Repararam como os times jogam muito
parecido? O toque de bola, as defesas bem organizadas, o agrupamento dos
jogadores, a marcação na frente — são ideias espalhadas pelos técnicos
internacionais, mais ou menos como engenheiros e cientistas que espalham
conhecimento pelo mundo.
E, finalmente, no capítulo do livre mercado, tem a circulação de
capitais que financiam e fortalecem os clubes e os campeonatos. Mais
dinheiro, mais craques, mais espetáculo, que rende mais dinheiro e assim
vai. Capital e agregação de valor.
Não é por acaso que o mundo inteiro se rende ao beautiful game,
como o futebol é conhecido globalmente. Ali se encontra o que há de
melhor no mundo: integração, liberdade, portas abertas, arte e talento.
Toda vez que a pressionarem, Merkel deveria passar uns vídeos da sua
seleção, com Boateng, Ozil, Khedira, Sané. Idem para os demais líderes
europeus liberais.
Em tempo: Vladimir Putin reclamou uma vez do campeonato russo. “Parece
uma liga africana”, disse. Exagero racista. Mesmo porque a presença de
estrangeiros ainda não foi suficiente para formar lá um grande futebol,
verdadeiramente europeu.
Carlos Alberto Sardenberg é jornalista
O Globo
extraídaderota2014blogspot
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