por Ascânio Seleme O Globo
A senadora Gleisi Hoffmann se aproxima de Lula, estica seu pescoço para
chegar mais perto, e cheira o líder que discursava para a massa de
militantes horas antes de se entregar à polícia para cumprir sua pena de
12 anos de cadeia. Gleisi volta para o seu lugar e diz para Dilma “é
cachaça”. Dilma dissimula, faz de conta que não é com ela e entabula uma
conversa com Manuela. Segundos antes, Dilma passa por Gleisi e cochicha
alguma coisa. Deve ter dito que Lula cheirava à bebida. E Gleisi foi
conferir. Esta cena mostra muito bem como todos os envolvidos nela são
humanos, mais que humanos, são gente simples que reage a situações
especiais da vida com naturalidade.
Outra cena deste mesmo comício mostra um momento de cuidado e ternura
que humaniza ainda mais episódio. Lula bebe golinhos pequenos de uma
garrafa de água de plástico. Manuela, ao lado do líder, conversa com
ele, impossível saber o que falam. Mas ela olha para a garrafa, faz
gestos com a mão, e quando um ajudante se aproxima para tirá-la de Lula,
Manuela tenta ajudar. Lula reage, segura a garrafa, fala alguma coisa,
dá mais um golinho e por fim solta a garrafa. Nada mais natural e
humano. Quem não tomaria sua bebida preferida momentos antes de começar a
cumprir uma pena de 12 anos?
Lula se comportou da maneira natural, como que se esperava. Ele vinha de
mais de 30 horas de tensão, mal acomodado que estava, dormindo duas
noites numa sala do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo,
tinha que, em algum momento, relaxar. O curioso é que Lula escolheu dar
aqueles golinhos pouco antes de fazer um dos mais importantes discursos
da sua vida. Não o melhor, até porque foi apenas uma versão dos últimos
que proferira. Mas o que ficaria para a História.
O fato é que Lula sabia o que estava fazendo. Ele se conhece bem. Sabia o
quanto aguentaria, e que não seriam uns goles a mais ou a menos que o
impediriam de falar em seguida. Na época em que trabalhava como torneiro
mecânico na mesma São Bernardo, Lula e seus amigos bebiam sempre nos
intervalos de turnos, na hora do almoço. Bebiam e algumas vezes jogavam
uma peladinha antes de voltar ao batente. Ele próprio um dia contou esta
história, rindo, dizendo que os amigos voltavam para o trabalho
encharcados de suor dentro de seus macacões.
Mais tarde, depois que estas duas cenas foram destacadas e circularam
nas redes, Manuela deu entrevista dizendo que Lula não bebeu antes de
discursar. Gleisi não disse nada, menos ainda Dilma. As imagens não
deixam muita dúvida, apesar do carinho de Manuela querendo proteger
Lula. Mas a deputada concordou que, fosse ela quem estivesse na
iminência de ser presa, também tomaria cachaça. Enfim, o que importa em
todo o episódio é que, ao contrário do que quis fazer crer, Lula é um
ser humano cercado por seus fantasmas, suas angústias, suas alegrias e
seus prazeres.
Houve uma época em que Lula se dedicava com mais afinco aos prazeres da
vida. Foi quando tentou expulsar do Brasil o correspondente do “New York
Times”, Larry Rohter, que publicou no jornal notícia de que “o hábito
de bebericar do presidente” estava virando preocupação nacional. Rohter
errou, porque os goles de Lula não preocupavam ninguém, mas também
acertou, porque aquele era mesmo um hábito de Lula. Como de resto, de
uma grande parcela da população adulta brasileira. E até onde se saiba,
beber nunca atrapalhou Lula de governar.
No discurso que fez depois daqueles golinhos, ao dizer que já não era
mais um ser humano, acrescentou que virou uma ideia. Talvez uma boa
ideia, mas com certeza um ser humano igualzinho a todos os outros, como
suas fraquezas e fortalezas. Tentou-se criar um mito em torno do homem
que resistia à ordem de prisão, que era carregado nos ombros pela
aguerrida militância. O que se viu foi um condenado por corrupção se
agarrando nos últimos fios de esperança que havia, e tomando uns goles
para acreditar que aqueles fios poderiam resistir ao peso da sua culpa.
Não resistiram.
Lula é um dos protagonistas mais importantes que a nação já construiu. E
o que mais o difere de outros grandes líderes que transitaram pelas
páginas da nossa história é exatamente o fato de ser mais comum que os
demais. Embora seja uma metamorfose ambulante, como ele mesmo se
definiu, complexo e contraditório, Lula é um homem mais raiz que os seus
antecessores. Por isso, talvez, tenha sido capaz de beber cachaça na
frente de milhares de pessoas fingindo estar tomando água.
Ascânio Seleme é jornalista
extraídaderota2014blogspot
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