por Roberto DaMatta O Globo
Quando um jovem antropólogo perguntou a um chefe indígena como ele
administrava seu povo, sua resposta foi exemplar. Quando — disse ele — o
pátio central da aldeia precisa ser limpo, eu pego o meu facão e inicio
a tarefa. Pouco a pouco, os outros chegam, e logo todos estão fazendo o
que deveria ser feito. Esse mesmo chefe ensinou a esse mesmo rapaz uma
antinorma da antipolícia brasileira: um bom chefe não acumula, ele
distribui...
O exemplo como exemplo é o apanágio dos humanos. Esses bichos que não
nascem prontos. São programados para não terem programa e, por viverem
na dúvida, precisam de mandamentos, leis e ideologias, quase sempre
vindas do céu e dos deuses, que variam entre si, dependem de pessoas e,
como ensinou Marx, de circunstâncias. O que é amizade aqui, é corrupção
por lá; o que é ativismo político acolá, é crime aqui... Por isso, esse
“bicho-homem” mata em nome da vida, suplicia em nome de Deus, torna-se
criminoso aviltando boas causas.
No nosso caso, eis a descoberta simultaneamente alarmante e
transformadora, os partidos do poder sempre foram donos e “cuidadores”
do povo brasileiro. Os eternos “doutores”, tidos como sábios, sabiam o
que fazer para levar o Brasil a um nobre futuro. Tanto isso é verdade
que hoje conseguimos ter linhagens de boçais que, cruzando entre si,
estão suicidando o país mas sem deixar de fazer — sejam eles de um lado
ou do outro — o que sempre tiveram o direito de fazer: roubar a coisa
pública em redes de favores.
Eu fico chocado quando ouço pessoas falando do “Brasil” como se elas não fossem também o
Brasil e não precisassem de ninguém para fazer o país que desejam. Na
nossa alma, somente o “governo” é responsável e capaz de modificar o
Brasil. Neste caso, o exemplo viria dos administradores-donos, não
somente do poder (na fórmula de Faoro), mas desse coisificado Brasil.
Uma visão vertical do sistema nos leva a olhar quem está por cima (para
pedir ou obedecer) ou por baixo (para favorecer ou cuidar) mas uma
perspectiva horizontal, hoje obrigatória, muda tudo. Agora, o exemplo
vem, esperamos, dos “supremos”, mas também do
bom senso igualitário: de um olhar agudo para os lados. Sem isso, vamos
continuar procurando messias e santos e encontrando caudilhos e boçais.
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Cito um exemplo clássico:
“Quando Xerxes, o grande rei dos persas, perguntou como aquelas cidades
gregas sem rei se levantariam contra ele, Demaratus (rei de Esparta
exilado) replicou: ‘Eles têm, sim, um senhor, e esse senhor é a lei que
eles temem muito mais do que qualquer dos seus súditos.
O que esse mestre comanda eles obedecem, e esse comando jamais varia —
ele jamais retrocede nas guerras quaisquer que sejam as circunstâncias e
permanecem em formação para conquistar ou morrer’.” (ver Alan Ryan, “On
Politics”)
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Estamos muito longe dos gregos e mais ainda dos “índios”, que a
boçalidade cultural situa na “Idade da Pedra”. Como ibéricos, o que vale
para uns não vale para os outros. Cada caso é um caso e, embora a lei
seja a mesma, o que conta não é o crime, mas quem o praticou. Não é a
lei que submete o “paciente”; é — estamos pagando para ver — o
“paciente” que a engloba.
A lei, reitero neste Domingo de Páscoa com um desalento esperançoso, depende de quem estamos falando.
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No livro de Suzanne Chantal, “A vida quotidiana em Portugal ao tempo do
terremoto (1755)”, Lisboa: Livros do Brasil, 1962, ela fala de uma
instituição pouco analisada, mas rotineira lá e aqui: o empenho.
“O chefe da família (e da casa) era, mais ou menos, o responsável (...)
pelo casamento das raparigas e pelo emprego dos rapazes. Acresce, assim,
que muitas vezes tinha que meter empenhos por seus protegidos, e
fazia-o sem escrúpulos nem vergonha. ‘Nomeie, pois, este rapaz oficial
num dos seus regimentos’ — dizia tranquilamente um português ao Conde de
Lippe, vindo para reorganizar o Exército — ele foi meu companheiro
durante vinte e cinco anos e isso merece recompensa.
Custava recusar qualquer coisa a um amigo — que aliás era quase sempre
um pouco compadre ou parente (...) por isso abundavam funcionários
inúteis, legiões de criados, os procuradores parasitas que gravitavam,
obsequiosos e sem problemas, à volta de todo homem de bem.
A proteção (...) estendia-se aos mais deserdados mas também aos menos
merecedores. Recomendava-se um incapaz e afiançava-se sem hesitações um
malandrim. Desde que fosse primo de uma criada ou bastardo de um primo
irrequieto. Uma pessoa influente pede a outra em benefício de uma
terceira, geralmente indigna ou nula, e obtém para esta um favor
imerecido, ou a sua isenção de um antigo merecido. De fato. (...) a
influência pessoal era usada a torto e a direito.(...) Um pedido
tornava-se um teste. Quanto
pior fosse o caso, quanto mais o protegido tivesse ofendido a moral ou a
lei, quanto mais obstáculos houvesse a vencer, mais o protetor
afirmaria o seu poder.(...)” (pagina 141).
Seria daí que viria o exemplo?
Roberto DaMatta é antropólogo
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