por Miguel Reale Júnior O Estado de São Paulo
As ruas vestiram-se novamente de verde e amarelo no dia 3 passado. Foi um grito da cidadania em legítima defesa, clamando à nossa Suprema Corte para não consagrar privilégios ao ex-presidente Lula, deixando a sociedade órfã, ao se garantir a impunidade por via do prolongamento indeterminado de processos, contrariando o estatuído em diversos ordenamentos de países democráticos. Mas como evoluiu essa questão da execução da pena, seja ela de que natureza for – prisão, serviços à comunidade ou multa?
Sob a égide do Código de Processo Penal de 1941, decretava-se a prisão preventiva de forma peremptória pelos crimes mais graves, além de se exigir o recolhimento à prisão para poder apelar. Também era imposta a prisão ao réu de crime de homicídio cuja autoria e materialidade fossem reconhecidas pelo juiz ao enviar o processo para julgamento pelo júri.
Dessas contradições próprias do nosso país, foi para salvar um facínora do naipe do delegado torturador Sérgio Fleury, membro da Esquadrão da Morte, que a rígida ditadura flexibilizou o processo penal, eliminando a prisão preventiva obrigatória, a prisão por pronúncia no homicídio e a exigência de se recolher à prisão para apelar.
Com a Constituição de 1988 se estabeleceu, no artigo 5.º, inciso LXI, que a prisão pode decorrer do flagrante delito ou de ordem escrita por autoridade competente. Logo a seguir dispõe, no inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado sem sentença condenatória transitada em julgado”.
De 1988 a 2009 não se reconheceu o estado de culpado, para o que se exige trânsito em julgado, ou seja, o esgotamento total dos recursos, como condição para se efetivar a decisão condenatória imposta pela autoridade judiciária de segunda instância. O trânsito em julgado é necessário para reconhecimento da reincidência, mas não para a execução da pena, já findo o exame de mérito.
Foi em 2009 que o Supremo Tribunal Federal passou a exigir trânsito em julgado. A consequência foi desastrosa, pois a sociedade, especialmente diante dos delitos praticados por pessoas de maior nível econômico, sentiu-se lograda em face da Lei Penal. Condenados em segunda instância passaram a interpor recurso sabidamente descabidos com o fito de adiar a execução do veredicto condenatório. Recursos e mais recursos prolongam, assim, o processo até decisão final no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, apesar de não examinar o mérito, atende à defesa ao perenizar a não aplicação da condenação.
O baixíssimo porcentual de vitória relevante em recurso especial criminal no STJ mostra que o efeito principal dessa medida tem sido impedir a eficácia do Direito Penal, já firmada no mérito de modo irreversível em decisão de segunda instância.
O mais lúcido do ensinamento de Beccaria consiste em ter proclamado ser mais importante a imposição breve e certa de uma pena do que sua exacerbação prevista em lei. Um Direito Penal sem aplicação o mais urgente possível, respeitados os direitos do réu no processo, conduz à anomia, à descrença na justiça, à certeza do reino da impunidade, com o desfazimento da finalidade do Direito como forma principal de controle social, gerando a convicção perigosa de tudo ser permitido, pois nada é punido graças à perenidade do trâmite processual.
Os advogados, sob um ponto de vista abstrato, como figuras essenciais à administração de justiça, devem se desfazer da visão específica de patronos de réus para, ampliando a sua perspectiva, olharem também o interesse maior da sociedade, a finalidade do Direito de promover a paz social e a segurança, consolidando-se a confiança na justiça.
Se pequeno porcentual, menos de 1%, dos recursos especiais é provido no STJ, no que tange ao veredicto condenatório, é imperioso fazer, então, um balanceamento de bens. De um lado, a suspensão, por longo tempo, de concretização do Direito Penal, por via de recurso restrito ao exame de questões de direito, pois o mérito (tipificação do crime e responsabilidade pessoal) já foi decidido, após o devido processo em duplo grau de jurisdição; e, de outro lado, a necessidade de responder ao anseio de qualquer sociedade organizada de se saber protegida pela efetiva imposição da lei penal.
O princípio da razoabilidade do tempo da resposta judicial, inscrito na Constituição, consagra que os relevantes efeitos do Direito Penal – o de reafirmar a validade dos valores feridos pelo ato delituoso, reinstalando a confiança dos consorciados na importância dos bens atingidos e protegidos pelo ordenamento, bem como a força intimidativa da aplicação da resposta penal, para prevenir novos crimes – desaparecem no mundo imenso dos recursos processuais. Seus meandros destroem o Direito Penal.
Se for um caso de evidente má aplicação da lei, o remédio para não execução da pena após decisão de segunda instância está em solicitar ao presidente do tribunal de segunda instância, como se fez desde sempre até 2009, que ao encaminhar o recurso especial ou extraordinário dê efeito suspensivo, como prevê o artigo 1.029, parágrafo 5.º, do Código de Processo Civil.
A indagação a ser feita nesse balanceamento de valores é a seguinte: que sociedade queremos? A da segurança e certeza dos nossos cidadãos de o Estado garantir, com respeito aos direitos dos réus, a tutela concreta de bens essenciais contra atos delituosos lesivos, ou a postergação da aplicação da lei penal mediante a interposição infinda de recursos, em geral, malsucedidos, como fruto de parcial interpretação gramatical da Constituição, sem visão mais ampla da finalidade essencial da lei penal?
A resposta está no voto de Barroso: “É legítima a execução provisória da pena após a decisão condenatória de segundo grau, antes do trânsito em julgado para garantir a efetividade do direito penal”. Só assim, haverá confiança dos cidadãos na Justiça de seu país e paz social.
* MIGUEL REALE JÚNIOR É ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA
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