por Eros Roberto Grau O Globo
Dizem que me arrependo por ter votado — quando era juiz daquele tribunal
dito supremo e relator de um habeas corpus — no sentido de que a
execução de pena de privação de liberdade somente poderia ser imposta
após o trânsito em julgado de uma ação penal. Haveria de ser assim,
afirmei então, salvo se a prisão fosse preventiva.
Hoje meu entendimento é outro, mas não tenho do que me arrepender. Isso
porque — como diz o Nelsinho Motta, em uma linda canção — nada do que
foi será de novo do jeito que já foi um dia: a vida vem em ondas como o
mar!
Vivo a repetir que os textos da Constituição e das leis são uma coisa e
as normas deles extraídas outra, as duas distintas entre si. Isso porque
a norma é expressão do texto normativo no quadro da realidade,
exatamente no momento em que a Constituição e as leis estiverem sendo
aplicadas.
Eis um exemplo do qual costumo me valer: nosso Código Penal, de 1940,
tipifica como crime o atentado público ao pudor; daí que uma mulher que
em 1943 fosse à praia ou à piscina de maiô de duas peças, cavado, seria
perseguida pela polícia; bem ao contrário, uma mulher que hoje lá vá de
topless — não a mesma mulher! — não será importunada.
As normas jurídicas são a expressão dos textos normativos dos quais extraídas no quadro da realidade, aqui e agora.
Não dependo de juristas para me explicar. Além de recorrer ao Nelsinho
Motta, vou agora a outro que também não era um deles, o general Charles
de Gaulle.
A Constituição — dizia ele em seu “Discours et messages”, edição da Plon
em 1970, página 453 — é um envelope. O que está contido dentro dela
surge no e do dinamismo da vida político-social. Quem aplica os textos
normativos há de ser capaz de apreender esse dinamismo. E de modo tal
que, ainda que não tenha consciência disso, o movimento da realidade o
conduzirá a essa apreensão. Esses textos, da Constituição e das leis —
repito —, apenas adquirem força normativa na medida em que as normas
jurídicas estejam sendo cotidianamente reconstruídas pelos juízes e
tribunais.
Por isso hoje, aqui e agora, no mundo cá onde estou — resistindo à
tentação de defender a prisão imediata, a partir das decisões
monocráticas dos juízes em primeira instância! — não me arrependo do
passado e me sinto feliz com a decisão daquele tribunal onde estive a
trabalhar por alguns anos, decisão que reafirma a jurisprudência da
constitucionalidade da prisão em segunda instância. Cada coisa a seu
tempo, qual se lê no Eclesiastes 3:1.
Eros Roberto Grau é ministro aposentado do STF
extraídaderota2014blogspot
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