Jornalista Andrade Junior

domingo, 19 de fevereiro de 2017

: Delações e crime organizado

Almir Pazzianotto Pinto Publicado no Estadão

Aquilo que no jargão policial era conhecido como “crime comum” assumiu tal nível de sofisticação que a expressão se apequenou. E a correta passou a ser “crime organizado”.
A complexa estrutura de grandes facções criminosas obedece a código fundado em usos e costumes e a organograma. Embora seja inviável o seu registro como pessoas jurídicas, são empresas com diretorias, consultores, gerentes e infraestrutura operacional, na qual estão os subalternos incumbidos dos assaltos a bancos e carros-fortes, do tráfico de entorpecentes, de roubos de veículos, assassinatos, sequestros, rebeliões, comercialização de produtos roubados. Como empreendimentos marginais revestidos de características singulares, é comum recorrerem à terceirização mediante subcontratos.
Entre marginais, ocultar a identidade é prática obrigatória, destinada a dificultar a ação de investigadores. Ao invés do nome, usam apelidos relacionados a hábitos, aparência física ou origem. Entre os mais divulgados temos o Paca, Birosca, Gegê do Mangue, Sono, Madruga, Moringa, Gordão, Casca, Bô, Tio, Boy, Marcola, Fernandinho Beira-Mar.
O topo da pirâmide econômica nacional alberga, entre políticos e homens de bem, delinquentes de alto coturno reunidos em partidos ou sociedades registradas como pessoas jurídicas de direito privado, com ações na Bolsa. Os objetivos, porém, são mesmissimamente os mesmos, como escreveu Ruy Barbosa na Réplica: amealhar dinheiro ilegal para conquistar, aprofundar e fortalecer poder.
No crime organizado os resultados são contabilizados em reais. Já no crime engravatado os meliantes não se satisfazem com pouco. Os negócios, aparentemente regulares, celebrados de acordo com as exigências legais, envolvem centenas de milhões ou bilhões de dólares. O crime organizado socializa os resultados entre os membros das quadrilhas, em pagamento de honorários a advogados, corrupção de policiais, assistência aos familiares dos mortos, presos ou foragidos e serviços à comunidade. Nas altas esferas as ambições são maiores. Grandes grupos rateiam o dinheiro infame que, por motivos óbvios, será ocultado por testas de ferro, laranjas, ou camuflado em paraísos fiscais. Computadores, celulares e gravadores substituem pistolas, fuzis e metralhadoras. A segurança não é tarefa confiada a guarda-costas, mas entregue a famosos escritórios de advocacia. Nas trocas de informações telefônicas, ou pela internet, o crime engravatado aderiu ao uso de sugestivos cognomes: Boca Mole, Angorá, Caju, Índio, Polo, Las Vegas, Babel, Primo, Feia, Bitelo, Campari, Kfata, Pino são os mais conhecidos.
Se nos aspectos estruturais o crime organizado e o crime engravatado revelam semelhanças, no comportamento em juízo as diferenças são imensas. Na ética do crime comum ou organizado, delação é delito imperdoável, punido com execução sumária, à bala. Sem fazer comparações, lembro que Judas Iscariotes delatou Cristo com um beijo, Joaquim Silvério dos Reis entregou Tiradentes à Coroa portuguesa e o Cabo Anselmo apontou companheiros ao DOI-Codi.
Como acusação anônima, a delação é, também, expediente abominável. Quem confessa acusa a si mesmo, o delator lança a rede contra terceiros. Com algum esforço é possível compreender que o faça, após ser cooptado por especialistas na técnica indolor de arrancar informações. Relatam-se casos de delatores habituados a vida farta, deferências e privilégios que não resistiram após permanecerem confinados alguns dias em cubículo de concreto, sem cama e sem banheiro, obrigados a comer de marmita e se servir de latrina turca. Privados da presença da família, tendo a cara estampada na televisão, em jornais e revistas, concordaram com a amenização da pena delatando cúmplices, sócios e amigos íntimos. A delação pode resultar de deslize ou excesso de confiança. Na maioria dos casos, entretanto, é tentativa abjeta de ser tratado com leniência.
O Código de Processo Penal (CPP) não se refere à delação como meio de prova, mas autoriza o juiz instrutor a recorrer a fonte independente de informações, sutil designação dada ao delator, no artigo 157, § 2.º. É o mapa da mina, o caminho das pedras. Abrevia investigações. Delação homologada tornou-se modalidade transversal de prova provada usada para acelerar a tramitação de processo. Simplifica a tarefa de dosagem da pena, aliviada pela entrega da cabeça de alguém.
Sou pouco afeito ao Direito Processual Penal. Conheço, porém, razoavelmente a natureza humana para entender que a delação deve ser admitida com parcimônia e apenas em casos especiais. O País é grande; as condições de vida, marcadas por violentos contrastes; as divergências políticas, não raro impregnadas de radicalização. O ódio ao adversário passa do pai ao filho, ao neto. Em alguns Estados a estrutura do Poder Judiciário é deficiente, com escasso número de comarcas e juízes, como revelam os relatórios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em mais de 70% delas não há Defensoria Pública e nem sempre o acusado dispõe de alguém para defendê-lo.
Nos processos da Operação Lava Jato as evidências são robustas. As provas obtidas pelo juiz Sergio Moro apressaram a coleta de documentos e de informações, permitindo que as ações sejam julgadas com presteza. A confirmação das decisões convence de que tudo se fez conforme o devido processo legal, garantido o direito de defesa.

O crime engravatado é tão repulsivo quanto o crime organizado. Exige dura repressão. A Justiça não pode tergiversar, mas persegui-lo com a fúria dos justos para que não prolifere e ponha em perigo a democracia. A Operação Lava Jato é algo inédito na História. E deve prosseguir até as últimas consequências.































EXTRAÍDADEAUGUSTONUNESOPINIAOVEJA

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