por Fernão Lara Mesquita O Estado de São Paulo
Na sua indigência de heróis, na sua ancestral ressaca de injustiças, o
Brasil consola-se olhando obsessivamente para trás, procurando vingança
mais do que esperando justiça. A Lava Jato avança, mas por caminhos
tortos, sempre com uma nota de arbitrariedade, sempre com prejuízo da
segurança jurídica. “Corrigem-se” provisoriamente
pessoas selecionadas, mas não se corrigem instituições. O País faz
força para se agarrar a essa esperança, mas não há no ambiente o brilho
da iminência da chegada do novo nem qualquer indicação de que o Brasil
que sairá dessa purgação será essencialmente melhor que o que entrou.
Mesmo assim a operação é mantida sob cerco. Um por um, os divergentes vão sendo cooptados. Ninguém ergue a mão contra Curitiba; “paga-se um mico” aqui
e ali, mas os subornados e os subornandos da nova e da velha-guarda
continuam tocando a vida exatamente como sempre, enquanto resistem
molemente à Lava Jato, à espera de que se extinga pelo cansaço.
Poderia mais uma vez dar certo se só de pessoas se tratasse. Mas desta
vez é diferente. O caso é de vida ou morte. Tudo foi longe demais. A
crise não é financeira, é estrutural. A economia continua em parafuso, a
arrecadação continua em parafuso. O caos a que o País se acostumou das
muralhas do Estado para fora já invadiu o pátio desse último reduto da
estabilidade, e continua a subir. Só as torres do poder seguem
incólumes, mas não por muito tempo. Placebos e drogas paliativas, a
sombria matemática de cada mês confirma, não fazem mais efeito. Não há
saída senão por ações muito concretas. As reformas da Previdência e
trabalhista são essenciais, mas não bastam. O Brasil Oficial, obeso, não
voltará a caber no Brasil Real, esquálido, senão passando por um regime
de emagrecimento radical.
Custaria muito menos, aliás, do que se quer fazer crer. Há tanta gordura
sobrando nas camadas mais altas do poder que não faltaria muito a ser
feito se apenas enquadrássemos esse segmento na lei. A questão é que, se
houve algo que esse pessoal fez com absoluta competência, foi tornar
ilegal exigir-lhes respeito à lei.
Há um STF de boa vontade procurando saídas. Foi o que repeliu com a figura jurídica do “desvio de finalidade” os
dribles que Eduardo Cunha, primeiro, e Lula, quando nomeado para a Casa
Civil como Moreira Franco agora, tentaram dar na lei. Mas há também o
outro que se encolhe para ministrar o mesmo remédio corporação adentro
quando ela invoca a autonomia dos Poderes para multiplicar os próprios
privilégios. Ainda assim, ficou indicado um caminho. Promover um grande
“realinhamento de finalidades”; convocar um mutirão cívico-jurídico para
limpar a Constituição com a própria Constituição, escoimando-a de tudo o
que não sejam direitos válidos para todos, seria tarefa fácil para os
grandes acrobatas do argumento que se sentam naquela Corte se houvesse
vontade política para tanto.
Mas vontade política não se põe, se impõe. O problema desta nossa “democracia” obsoleta
é o mesmo da Roma de há mil anos: o completo desligamento dos
representantes dos seus representados e a corrupção que esse
distanciamento engendra.
A força da Nação já se provou irresistível. Ela pode qualquer coisa que
se decidir a fazer. A rejeição a esse Brasil do passado, contra o qual
tantas vezes marchou, é unânime, mas falta uma referência para dirigir
todos os olhares para o futuro; algo sólido o bastante para merecer ser
perseguido.
Pois essa referência existe. As ferramentas de “democracia semidireta”,
juntando o melhor de Atenas com o melhor de Roma, põem os pacientes das
instituições urdidas pelos representantes eleitos em condições de
levar-lhes, tantas vezes quantas entenderem necessário, “propostas às quais eles não possam resistir” para
aperfeiçoá-las. Inventado na Suíça nos meados do século 19 e
transplantado para os Estados Unidos na virada para o 20, esse método de
afinação compulsória de “vontades políticas” vem
resgatando populações inteiras da opressão, da corrupção e da miséria
há mais de 150 anos. É o antibiótico das doenças políticas. É graças a
ele que funcionam as democracias que funcionam.
Compõe-se de três elementos simples. O direito de convocar, por
iniciativa popular, referendos de confirmação ou rejeição das leis
aprovadas nas Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas, o de
formular e impor leis de iniciativa popular aos legisladores e o de
recorrer livremente ao “recall” para impedir que representantes eleitos possam escolher deixar de ouvir seus eleitores depois de eleitos.
Esse sistema se aplica nos níveis municipal e estadual, mas, por assim dizer, “instrui” o
nível federal. Pressupõe o respeito ao princípio federativo que nossa
Constituição prescreve, mas os políticos não acatam, segundo o qual o
município deve resolver tudo o que diz respeito ao município, o governo
estadual, só aquilo que envolver mais de um município e o governo
federal, apenas e tão somente as relações internacionais, a proteção da
moeda e a guerra. Requer também que seja absolutamente claro quem
representa quem na política estadual e municipal, o que se consegue com
eleições distritais. Cada distrito elege apenas um representante e,
nele, o eleitor é rei. Qualquer um pode iniciar uma petição para
rejeitar ou criar uma lei, manter ou cassar o mandato do seu
representante. Nos EUA, com algo entre 5% e 7% dos eleitores do distrito
assinando a petição, a iniciativa está qualificada para uma votação do
distrito inteiro. Nesse sistema, portanto, todo mundo tem o poder de
propor mudanças e ser obrigatoriamente ouvido, mas ninguém tem poder
suficiente para se impor aos demais.
Brasília é o passado. A corte é o pântano. Dali não sairão senão mais
sapos. O redirecionamento do olhar da Nação para um futuro em torno do
qual se unir depende essencialmente do redirecionamento do olhar da
imprensa do eterno “mais do mesmo” de Brasília para os modernos métodos de domesticar políticos em uso pelo mundo afora. É lá que a resposta está.
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