Jornalista Andrade Junior

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A canonização estatal de Marighella

Escrito por Felipe Melo  
Anistiar Carlos Marighella e chamá-lo de “herói” é, no mínimo, uma ofensa terrível a todos aqueles que perderam seus bens, sua saúde e, em última instância, suas vidas em virtude da sanguinária sede de poder das hostes marxistas.


“Todos nós somos guerrilheiros, terroristas e assaltantes e não homens que dependem de votos de outros revolucionários ou de quem quer que seja para se desempenharem do dever de fazer a revolução.”


Essa frase é bastante conhecida e mostra um pouco do caráter de quem a escreve: Carlos Marighella. Membro da Executiva do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que abandonou em 1966 por achar que o partido estava traindo o sacrossanto dever que todo comunista tem de fazer a revolução, Marighella fundou a Aliança Libertadora Nacional (ALN), um dos grupos mais cruéis da guerrilha marxista brasileira que atuou durante o Regime Militar (1964 – 1985). A ALN foi responsável por assaltos, sequestros, atentados a bomba e diversos assassinatos. Seu objetivo era claro: instaurar uma ditadura marxista-leninista em território brasileiro.

Ainda que ele mesmo se assumisse guerrilheiro, terrorista e assaltante, não é essa a visão que o governo federal tem. O Diário Oficial da União do dia 9 de novembro deste ano traz a seguinte portaria:
PORTARIA Nº 2.780, DE 8 DE NOVEMBRO DE 2012
O MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA, no uso de suas atribuições legais, com fulcro no artigo 10 da Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002, publicada no Diário Oficial de 14 de novembro de 2002 e considerando o resultado do julgamento proferido pela Comissão de Anistia na 6ª Sessão de Julgamento da Caravana de Anistia, na cidade de Salvador/BA, realizada no dia 05 de dezembro de 2011, no Requerimento de Anistia nº 2011.01.70225, resolve:

Declarar CARLOS MARIGHELLA filho de MARIA RITA DO NASCIMENTO MARIGHELLA, anistiado político “
post mortem”, nos termos do artigo 1º, inciso I, da Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002.

JOSÉ EDUARDO CARDOZO

Somente isso já seria suficiente para causar uma profunda indignação em qualquer pessoa com mínimo conhecimento da nossa história. No entanto, o blog do Ministério da Justiça – um veículo oficial de comunicação desse órgão do Executivo – fez questão de colocar uma cereja nesse bolo: chamou Marighella de “herói da resistência à ditadura militar”.

A organização fundada e dirigida por esse “herói” foi responsável por bárbaros crimes. Em 22 de junho de 1969, por exemplo, guerrilheiros da ALN atacaram os policiais militares Guido Boné e Natalino Amaro Teixeira: a viatura em que estavam foi incendiada, e os ambos morreram carbonizados. Em outra ocorrência, datada de 3 de setembro do mesmo ano, o comerciário José Getúlio Borba, que trabalhava em uma loja de aparelhos eletrodomésticos, foi morto por guerrilheiros que reagiram a voz de prisão. E, ao contrário de serem casos isolados, essas ocorrências fazem parte da própria essência da bandeira que Carlos Marighella empunhou durante toda sua vida: a da ditadura do proletariado.

A alegação de que aqueles que pegaram em armas contra o governo militar objetivavam a “redemocratização” do Brasil é empulhação pura e simples, e todos estão cansados de saber disso. No entanto, o óbvio ululante se tornou hoje em dia do fruto de uma hermenêutica deturpada, o que gera uma visão distorcida das coisas. Essa lógica produz inferências interessantes: 1) o governo militar foi algo ontologicamente pérfido e vil; 2) o contrário do governo militar é a democracia; 3) se alguém lutou de alguma forma contra o governo militar, era porque só tinha em mente a “restauração” do regime democrático; 4) a luta armada só surgiu em face da violência do regime, e foi, portanto, tão-somente uma característica acidental (e uma reação legítima) da luta contra o governo militar.

Se não é suficiente interpretar os atos criminosos de Marighella e seus camaradas como o que realmente foram – ações cruentas e desprezíveis que visavam à transformação do Brasil em uma ditadura comunista –, então recorramos às próprias palavras de Marighella.

Quando o fundador da ALN rompeu oficialmente com o PCB, em 1966, alegou que o partido estava traindo os ideais revolucionários que herdara ao supostamente defender uma via pacífica de ação:

Em vez de uma tática e estratégia revolucionárias, tudo é reduzido – aberta ou veladamente – a uma impossível e inaceitável saída pacífica, a uma ilusória redemocratização (imprópria até no termo).

Parece não se ter compreendido Lênin quando em “Duas Táticas” afirma que “os grandes problemas da vida dos povos se resolvem somente pela força”.
Em outra parte, falando sobre a vitória, acrescenta Lênin que esta “deverá apoiar-se inevitavelmente na força armada das massas, na insurreição”, e não em tais ou quais instituições criadas “por via legal” e “pacífica”.
[1]

A violência não era uma deturpação da oposição ao regime militar oriunda do medo e do desespero gerados pela repressão: a violência era a manifestação mais honesta e clara do espírito revolucionário. Marighella não apenas o admitiu claramente, mas invocou-o como um dos motivos pelos quais estava abandonando o PCB e seguindo um caminho próprio.

Ao fundar o Agrupamento Comunista de São Paulo, que depois se tornaria a ALN, Marighella deixa ainda mais evidente que a violência guerrilheira é a própria essência de seu afã revolucionário:

Pensamos sobre a guerrilha o mesmo que a Conferência da OLAS [Organização Latino-Americana de Solidariedade] quando, no ponto 10 de sua “Declaração Geral”, apresenta a guerrilha como embrião dos Exércitos de Libertação e como método mais eficaz para iniciar e desenvolver a luta revolucionária na maioria dos países latino-americanos.

Não se trata, portanto, de desencadear a guerrilha como um foco, como querem insinuar nossos inimigos, acusando-nos daquilo que não pretendemos fazer.

O foco seria lançar um grupo de homens armados em qualquer parte do Brasil, e esperar que, em consequência disso, surgissem outros focos em pontos diferentes do país. Se assim fizéssemos, estaríamos adotando uma posição tipicamente espontaneísta e o erro seria fatal.

Para nós, a guerrilha brasileira não terá condições de vitória senão como parte de um plano estratégico e tático global.

Isto quer dizer que a guerrilha exige preparação e que o seu desencadeamento depende dessa preparação. A preparação da guerrilha, coisa muito complexa e muito séria, não pode ser vista com leviandade. Tal preparação exige o adestramento do combatente, a coleta de armas, a escolha do terreno, a fixação da estratégia e da tática a seguir, e, por fim, o estabelecimento do plano de apoio logístico.
[2]

A guerrilha não é, portanto, apenas um recurso extremo utilizado em casos excepcionais: para Marighella, “a guerrilha é a vanguarda revolucionária, o seu núcleo fundamental, e constitui o centro do trabalho dos comunistas e demais patriotas”. Não é possível revolução sem ação revolucionária, e esta se apóia essencialmente na violência. Mais adiante, escreve Marighella:
Precisamos agora de uma organização clandestina, pequena, bem estruturada, flexível, móvel. Uma organização de vanguarda para agir, para praticar a ação revolucionária constante e diária, e não para permanecer em discussões e reuniões intermináveis.

Uma organização vigilante, severa contra os delatores, aplicando os métodos de segurança eficientes para evitar que venha a ser destroçada pela polícia e para impedir a infiltração do inimigo.

Os membros desta organização são homens e mulheres decididos a fazer a revolução. Os comunistas de tal organização são companheiros e companheiras de espírito de iniciativa, livres de qualquer espírito burocrático e rotineiro, que não esperam pelos chamados assistentes, nem ficam de braços cruzados aguardando ordens.

Ninguém é obrigado a pertencer a esta organização. Os que a aceitam, tal como ela é e dela vêm fazer parte, só o fazem voluntariamente, só querem ter compromissos com a revolução.
[3]


Não havia santos. Não havia inocentes. As coisas sempre, desde o começo, foram colocadas de maneira clara, claríssima: acreditamos na violência, abraçamo-la como um modus vivendi, deixamo-la penetrar em cada um de nossos poros e a ela nos entregamos de corpo e alma sem pressões, voluntária e deliberadamente. Em outro documento, Marighella repisa a defesa da violência:

As organizações revolucionárias que se dedicaram ao proselitismo no transcurso de 1968 não conseguiram avançar. A outra maneira do crescimento das organizações revolucionárias rejeita o proselitismo e dá ênfase ao desencadeamento das ações revolucionárias, apelando para a violência extrema e o radicalismo.

Foi esta a maneira que preferimos, por ser a mais convincente, quando se trata de derrubar a ditadura com a força das massas e através da luta armada, repudiando o jogo político das personalidades e grupos burgueses.

Quando utilizamos o método da ação revolucionária, os elementos que vêm às nossas fileiras só o fazem porque desejam lutar e sabem que não encontrarão outra alternativa entre nós senão a luta prática e concreta.

Sendo o nosso caminho o da violência, do radicalismo e do terrorismo (as únicas armas que podem ser antepostas com eficiência à violência inominável da ditadura) os que afluem à nossa organização não virão enganados, e sim, atraídos pela violência que nos caracteriza.
[4]

Não havia perspectiva de nada parecido com democracia nas táticas, nas ações e nos planos estratégicos de Marighella. Ele não foi um lutador da liberdade, alguém que dedicou sua vida a uma causa nobre, elevada: Marighella foi um facínora, um homem que aspirava “à tomada do poder pela violência da guerra revolucionária”.

Cap. Charles Rodney Chandler, uma das vítimas dos “heróis” incensados pelo governo.
Anistiar Carlos Marighella e chamá-lo de “herói” é, no mínimo, uma ofensa terrível a todos aqueles que perderam seus bens, sua saúde e, em última instância, suas vidas em virtude da sanguinária sede de poder das hostes marxistas. Com esse gesto, o governo brasileiro indica perfeitamente quem deve compor o panteão de heróis da nação: “guerrilheiros, terroristas e assaltantes”, homens devotados ao coletivismo ditatorial, à supressão da liberdade, à perseguição, à barbárie, à morte, homens que pavimentaram com os crânios de inocentes seu caminho revolucionário.

 

Notas:

[1] “Carta à Executiva”, 1º de dezembro de 1966. In: Escritos de Carlos Marighella. São Paulo: Editorial Livramento, 1979, p. 93.

[2] “Pronunciamento do Agrupamento Comunista de São Paulo”, 1968. In: Escritos de Carlos Marighella. São Paulo: Editorial Livramento, 1979, p. 132.

[3] “Pronunciamento do Agrupamento Comunista de São Paulo”, 1968. In: Escritos de Carlos Marighella. São Paulo: Editorial Livramento, 1979, p. 133-134.

[4] “O Papel da Ação Revolucionária na Organização”, maio de 1968. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; FERREIRA DE SÁ, Jair (Org.). Imagens da Revolução: Documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961 – 1971. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1985, p. 212.


Felipe Melo edita o blog da Juventude Conservadora da UnB.

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