por Fernão Lara Mesquita
Não há quem no serviço público brasileiro não tenha sido tocado ao menos
pela corrupção institucionalizada, aquela que oficialmente não é tida
como o que é porque a lei é o seu instrumento de ação. Nem mesmo os
militares passaram incólumes por essas três décadas de elevação da
cultura do privilégio à força em torno da qual tudo o mais gravita no
País oficial desde a Constituição de 88. Mas se havia qualquer dúvida
sobre o valor da reserva moral que lhes restou, ela acabou com os fatos
que se seguiram ao primeiro embate de 2019 entre Brasília e o Brasil.
Como acontece sempre na formação de qualquer governo, a “área econômica”
é a única que chega ao dia da posse com todas as suas referências
fincadas exclusivamente no País real. Brasília, de onde, com as regras
eleitorais vigentes, obrigatoriamente sai o núcleo dos grupos que se
substituem no poder, não sente o Brasil. Lá os salários sobem e as
carreiras progridem por decurso de prazo tão certo quanto que o sol
nascerá amanhã. Nunca aconteceu com seus familiares, nunca aconteceu com
seus amigos, nunca aconteceu com seus colegas de trabalho, nunca
aconteceu com eles próprios: a figura do “andar para trás” simplesmente
não existe no modelo cognitivo do típico cortesão de Brasília nem como
exercício abstrato de antecipação de uma possibilidade, simplesmente
porque essa possibilidade não existe.
Não é de surpreender, portanto, que para todos quantos a cada nova conta
a ser paga corresponde um novo “auxílio” arrancado ao favelão nacional o
“modelo de capitalização” na Previdência – que em português plebeu quer
dizer pagar por aquilo que se vai consumir – pareça uma inominável
maldade. Essa relação, para eles, nunca foi obrigatória.
Mas agora a realidade está aí nua e crua. Financiar os 30-40 anos de
ócio que o brasiliense aposentado típico vem colhendo sem nunca ter
plantado custou ao Brasil passar da economia que mais crescia para a
economia que mais decresce no mundo hoje, mas Brasília nem percebeu.
Brasília “cresce” sempre, chova ou faça sol, por “pétrea” determinação
constitucional. E, na dúvida, lá vem o cala-boca: “A Constituição não se
discute, a Constituição cumpre-se”.
Só que não.
Agora, à beira do precipício, até Brasília já sente a vertigem. O
inchaço do funcionalismo nos 13 anos de PT transbordando em progressão
geométrica para as aposentadorias na flor da idade que congelam os
salários públicos no tope de cada carreira por quase meio século
mergulhou essa previdência sem poupança num processo de metástase. Com
quase 40% do PIB entrando, já não sobra sequer para pagar aos
aposentados mais os seus substitutos com o salário de entrada. E como
quando falta dinheiro para pagar a funcionário no Brasil é porque já
faltou antes para tudo o mais – hospitais, escolas, segurança pública,
infraestrutura –, não há mais como não agir.
Velhos hábitos demoram para morrer, mas os embates da primeira semana de
governo deram indicações animadoras da força da humildade de Jair
Bolsonaro. Ele vacilou quando se calou diante do sindicalista
Lewandowski infiltrado no STF. Ele vacilou quando recusou vetar o
aumento dos incentivos para a Sudam e a Sudene. Ele tem vacilado diante
dos “quiéquiéisso companheiro” dos amigos da vida inteira das
corporações militar e política, de que faz parte. Ele vacilou, até,
diante do “fogo amigo” contra Paulo Guedes. Mas Paulo Guedes é um homem
de contas. A transição e os primeiros dias de governo têm sido uma
avalanche de números. E com números não se discute. Assim que Guedes se
decidiu a dar o limite dos “bailes” que estava disposto a levar de
Brasília parece ter caído a ficha e o presidente teve a nobreza de rever
sua posição. Realinhou o governo inteiro à Prioridade Zero de deter a
hemorragia previdenciária e o Brasil entrou em festa para deixar bem
clara a fundamental importância que essa atitude teve.
Brasília pode reagir a Onix Lorenzoni, mas o Brasil reage a Paulo
Guedes. E se confundir essas prioridades o governo comete suicídio e nos
leva junto. Não haverá segunda chance. Não há tempo. Privatizações e
descomplicações liberalizantes da vida produtiva poderão acelerar o
processo. Mas o que dirá se haverá ou não processo a ser acelerado é o
desenho da reforma da Previdência. E o lucro ou o prejuízo serão
colhidos inteiros a partir do momento em que esse desenho for conhecido.
Tudo isso parece ter-se tornado subitamente claro para o governo.
Tocados nos brios, os militares, que estão longe de desfrutar os maiores
entre os privilégios do Brasil com privilégios, embora vivam no que
para o País real não entra nem em sonho, declaram-se dispostos a puxar a
fila dos sacrifícios para dar o exemplo. É um gesto inédito na História
do Brasil e absolutamente decisivo. Se confirmado, cala para todo o
sempre a boca dos detratores da instituição. Já o campo do Legislativo
reflete, para bem e para mal, a diversidade do País. Mas quando chamado
ao sacrifício com o devido empenho, no governo Temer, prontificou-se a
responder majoritariamente a favor do Brasil. Foi detido pelo golpe
Janot-Joesley que abortou a votação decisiva na véspera de acontecer.
Desde então, sentindo espaço, suas piores figuras voltaram a dominar a
cena. Mas um novo Congresso vem aí e, no extremo, Poder eleito que é,
ele sempre faz o que o Brasil diz que quer que ele faça.
Falta, agora, o movimento da inefável Versailles da privilegiatura que
tem sido o Poder Judiciário. Não haverá avanço na segurança pública se
não houver avanço na economia. E não haverá avanço na economia se não
houver avanço na Previdência. Sem ambos, não haverá pacote de leis nem
articulação de forças de repressão capaz de deter a quase guerra civil
contra o crime organizado que vivemos. Mas se o ministro Sergio Moro e
seus fiéis escudeiros do Ministério Público, seguindo o exemplo dos
militares, liderassem o movimento de devolução de privilégios que suas
corporações há muito devem ao Brasil, a pátria com toda a certeza
estaria salva.
Jornalista
O Estado de São Paulo
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