Jornalista Andrade Junior

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

"O que falta para salvar a pátria",

por Fernão Lara Mesquita

 Não há quem no serviço público brasileiro não tenha sido tocado ao menos pela corrupção institucionalizada, aquela que oficialmente não é tida como o que é porque a lei é o seu instrumento de ação. Nem mesmo os militares passaram incólumes por essas três décadas de elevação da cultura do privilégio à força em torno da qual tudo o mais gravita no País oficial desde a Constituição de 88. Mas se havia qualquer dúvida sobre o valor da reserva moral que lhes restou, ela acabou com os fatos que se seguiram ao primeiro embate de 2019 entre Brasília e o Brasil.
Como acontece sempre na formação de qualquer governo, a “área econômica” é a única que chega ao dia da posse com todas as suas referências fincadas exclusivamente no País real. Brasília, de onde, com as regras eleitorais vigentes, obrigatoriamente sai o núcleo dos grupos que se substituem no poder, não sente o Brasil. Lá os salários sobem e as carreiras progridem por decurso de prazo tão certo quanto que o sol nascerá amanhã. Nunca aconteceu com seus familiares, nunca aconteceu com seus amigos, nunca aconteceu com seus colegas de trabalho, nunca aconteceu com eles próprios: a figura do “andar para trás” simplesmente não existe no modelo cognitivo do típico cortesão de Brasília nem como exercício abstrato de antecipação de uma possibilidade, simplesmente porque essa possibilidade não existe.
Não é de surpreender, portanto, que para todos quantos a cada nova conta a ser paga corresponde um novo “auxílio” arrancado ao favelão nacional o “modelo de capitalização” na Previdência – que em português plebeu quer dizer pagar por aquilo que se vai consumir – pareça uma inominável maldade. Essa relação, para eles, nunca foi obrigatória.
Mas agora a realidade está aí nua e crua. Financiar os 30-40 anos de ócio que o brasiliense aposentado típico vem colhendo sem nunca ter plantado custou ao Brasil passar da economia que mais crescia para a economia que mais decresce no mundo hoje, mas Brasília nem percebeu. Brasília “cresce” sempre, chova ou faça sol, por “pétrea” determinação constitucional. E, na dúvida, lá vem o cala-boca: “A Constituição não se discute, a Constituição cumpre-se”.
Só que não.
Agora, à beira do precipício, até Brasília já sente a vertigem. O inchaço do funcionalismo nos 13 anos de PT transbordando em progressão geométrica para as aposentadorias na flor da idade que congelam os salários públicos no tope de cada carreira por quase meio século mergulhou essa previdência sem poupança num processo de metástase. Com quase 40% do PIB entrando, já não sobra sequer para pagar aos aposentados mais os seus substitutos com o salário de entrada. E como quando falta dinheiro para pagar a funcionário no Brasil é porque já faltou antes para tudo o mais – hospitais, escolas, segurança pública, infraestrutura –, não há mais como não agir.
Velhos hábitos demoram para morrer, mas os embates da primeira semana de governo deram indicações animadoras da força da humildade de Jair Bolsonaro. Ele vacilou quando se calou diante do sindicalista Lewandowski infiltrado no STF. Ele vacilou quando recusou vetar o aumento dos incentivos para a Sudam e a Sudene. Ele tem vacilado diante dos “quiéquiéisso companheiro” dos amigos da vida inteira das corporações militar e política, de que faz parte. Ele vacilou, até, diante do “fogo amigo” contra Paulo Guedes. Mas Paulo Guedes é um homem de contas. A transição e os primeiros dias de governo têm sido uma avalanche de números. E com números não se discute. Assim que Guedes se decidiu a dar o limite dos “bailes” que estava disposto a levar de Brasília parece ter caído a ficha e o presidente teve a nobreza de rever sua posição. Realinhou o governo inteiro à Prioridade Zero de deter a hemorragia previdenciária e o Brasil entrou em festa para deixar bem clara a fundamental importância que essa atitude teve.
Brasília pode reagir a Onix Lorenzoni, mas o Brasil reage a Paulo Guedes. E se confundir essas prioridades o governo comete suicídio e nos leva junto. Não haverá segunda chance. Não há tempo. Privatizações e descomplicações liberalizantes da vida produtiva poderão acelerar o processo. Mas o que dirá se haverá ou não processo a ser acelerado é o desenho da reforma da Previdência. E o lucro ou o prejuízo serão colhidos inteiros a partir do momento em que esse desenho for conhecido.
Tudo isso parece ter-se tornado subitamente claro para o governo. Tocados nos brios, os militares, que estão longe de desfrutar os maiores entre os privilégios do Brasil com privilégios, embora vivam no que para o País real não entra nem em sonho, declaram-se dispostos a puxar a fila dos sacrifícios para dar o exemplo. É um gesto inédito na História do Brasil e absolutamente decisivo. Se confirmado, cala para todo o sempre a boca dos detratores da instituição. Já o campo do Legislativo reflete, para bem e para mal, a diversidade do País. Mas quando chamado ao sacrifício com o devido empenho, no governo Temer, prontificou-se a responder majoritariamente a favor do Brasil. Foi detido pelo golpe Janot-Joesley que abortou a votação decisiva na véspera de acontecer. Desde então, sentindo espaço, suas piores figuras voltaram a dominar a cena. Mas um novo Congresso vem aí e, no extremo, Poder eleito que é, ele sempre faz o que o Brasil diz que quer que ele faça.
Falta, agora, o movimento da inefável Versailles da privilegiatura que tem sido o Poder Judiciário. Não haverá avanço na segurança pública se não houver avanço na economia. E não haverá avanço na economia se não houver avanço na Previdência. Sem ambos, não haverá pacote de leis nem articulação de forças de repressão capaz de deter a quase guerra civil contra o crime organizado que vivemos. Mas se o ministro Sergio Moro e seus fiéis escudeiros do Ministério Público, seguindo o exemplo dos militares, liderassem o movimento de devolução de privilégios que suas corporações há muito devem ao Brasil, a pátria com toda a certeza estaria salva.
Jornalista

O Estado de São Paulo















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