por Roberto DaMatta O Globo
Temos nos confrontado com esse axioma moral ou ético quando o Brasil
desaba e descobrimos que assassinos são mais eficientes do que a polícia
e que os “de cima” nos roubam em nome dos “de baixo”, cujas vidas seus
governos vilmente traíram. Nossos conflitos não são resolvidos. Pelo
contrário, são pautados por denúncias e indecisões jurídicas. Vivemos
tempos nos quais os “de cima” têm sido modelos de vergonha, hipocrisia,
traição dos ideais socialistas e de valores republicanos.
Tempos de roubalheira como projeto político, nos quais ministros,
senadores, presidentes de partidos do povo, diretores de estatais e
outros “altos” funcionários públicos se locupletaram debaixo de domínio,
direção ou influência de um ex-presidente e de um ex-governador —
julgados e condenados, respectivamente, a 12 anos e a um século de
prisão!
Nossa impotência diante da criminalidade constitutiva da nossa alma
política é uma parte crítica desse cataclismo moral. De fato, como uma
Justiça destinada aos de baixo vai dar o exemplo enjaulando os de cima?
Nossas carteiras de identidade ideológicas foram batidas. E, por isso,
quanto mais tontos com os labirintos legais, mais invocamos nosso
labirinto legal. E aí surge um outro paradoxo: pois a lei é clara, mas o
problema jaz na sua complexa aplicação — e, muito especialmente, em
quem ela se aplica pois, com a devida vênia, praticamente toda a elite
política tem o “rabo preso”, num sistema onde “fazer política” é
enredar-se.
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O exemplo vem de cima, mas e se o crime é cometido pelos que estão em cima?
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Quando menino, aprendi que deveria ser sincero e dizer a verdade. Mentir
levava à hipocrisia, essa palavra complicada que é, porém, parte
constitutiva do universo humano. Sem mentira, hipocrisia e
pusilanimidade, sistemas políticos inteiros se desmanchariam do mesmo
modo que a verdade dita cara a cara transforma-se em “franqueza rude”,
como dizia contraditoriamente minha mãe. Recebi lições de sinceridade
tentando discernir quando o verossímil — vejam a rotação lógica — não
seria rude.
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— Você gostou do bolo?
— O que acha do meu penteado?
— Como estou?
— Devo dizer o que realmente penso?
— De que lado fico quando o meu cargo (que é público) entra em conflito
com o meu interesse de enriquecer a mim, ao meu partido e aos meus?
Cada uma dessas perguntas explicitam respostas diversas.
Em relação à primeira, mamãe, ela própria, me orientou enfaticamente
para sempre dizer um sonoro “sim”, mesmo que o bolo fosse uma merda. Não
tive dificuldade em seguir essa exemplo, embora tivesse problemas
quando a mãe do Valtinho repetia a fatia do bolo e eu pagava pela minha
polida insinceridade sendo “bem-educado”.
Em matéria de comida, somos sempre honestamente insinceros. O mesmo
ocorre em matéria de religião e de aparência — donde o nosso preconceito
reprimido, o qual só se liberta em surtos ou desabafos. Quanto mais
colocamos o reprimido dentro da cartilha do “medalhão” talhado por
Machado de Assis, mais neurótico é o surto...
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Mas, apesar desta ambiguidade do mentir falando a verdade e do jamais dizer o que se pensa, somos sinceros.
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“Catarina parece uma índia!”, exclamei na mesa de almoço, depois de
apreciar, com precoce curiosidade etnológica, uma amiga da família.
Ao sairmos da mesa, papai e mamãe, visivelmente perturbados, ralharam
comigo no corredor, na única admoestação que recebi em conjunto em toda a
minha vida. Jamais, repetiam eles, transtornados — esses
amazoneses-brasileiros sem preconceitos —, chame alguém de “índio”.
Principalmente se esse alguém for amigo e, como era o caso, for parecido
com um índio, completei, revelando a ironia da situação.
Puseram-me de castigo até que, mais velho, fui aprender que no Brasil a
gente, na dúvida, deveria mentir. Era um direito no nosso Direito...
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Como ser sincero se a insinceridade é a verdade, sobretudo no mundo
público, no qual a melhor decisão é decidir não decidir. Numa
interpretação que fiz do personagem Dona Flor — essa heroína de Jorge
Amado, tão onipresente na nossa literatura quanto a Capitu de Machado de
Assis —, assinalei que ela preferiu escolher não escolher entre Vadinho
— o marido morto que lhe provocava como espírito — e o Doutor Teodoro, o
regular farmacêutico que jamais praticara uma malandragem. É que ela
precisava da ambiguidade malandra de Vadinho para contrabalançar a
sensatez sem fantasia do farmacêutico. Entre mortificar-se na cruz do
certo ou do errado, da disciplina ou do excesso; entre matar-se como
fazem as heroínas do romance europeu tradicional, a carioca Capitu — que
viveu num Rio de Janeiro sem internet, sem telefones celulares e sem
Sérgio Cabral filho — preferiu ficar com os dois!
Tal como a nossa ordem jurídica, cujo lado luso, hoje — espero — em
revisão revolucionária, prevê recursos, infinitas instâncias e
prescrições. Enfim, uma cultura ou ontologia do perdão incomparável,
embora misericordioso, com um universo político igualitário e
republicano.
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Tudo isso revela como o plano pessoal canibaliza a esfera impessoal ou
pública, reiterando uma matriz hierárquica. Porque é nas aristocracias
que o “exemplo vem de cima”. Nas democracias, eis o susto, ele vem de
todos os lados. Sobretudo da opinião pública: ou seja “de baixo”! De
“qualquer um”...
Roberto da Matta é antropólogo
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