por Fábio Prieto O Estado de S.Paulo
“Eu tinha alguma coisa a dizer, mas não sei mais o quê” – o slogan criativo da revolução de 68, na França, ganhou o mundo.
Os juízes não têm a licença poética dos revolucionários. Cuidam da
previsibilidade das relações sociais. Os magistrados podem, até, ser
curadores de direitos revolucionários. Se assim o desejar a comunidade.
Seja qual for o regime político, nos julgamentos os magistrados precisam
dizer o que acreditam tenha sido ditado pelo povo aos legisladores.
Outra coisa é a engenharia do sistema de Justiça. Depende, histórica e
predominantemente, da influência decisiva de duas outras vozes: as que
estão nas Supremas Cortes e nos Parlamentos.
Nas sociedades democráticas, os juízes alimentam a justa expectativa de
que essas instituições, ouvindo outras tantas – e os próprios
magistrados –, sejam hábeis no trato do tema público e estratégico do
regime de benefícios da magistratura. Na América Latina, no final dos
anos 1990, muitas correntes de pensamento estavam preocupadas com esse e
outros aspectos de um projeto de modernização dos sistemas de Justiça.
O Banco Mundial disse aos juízes, no conhecido Documento Técnico 319:
“Um Judiciário independente requer padrões salariais competitivos. Em
geral, os salários permanecem baixos se comparados com setores privados e
algumas vezes com outros cargos no setor público”.
O populismo autoritário latino-americano percebeu a importância da
questão: a organização de um Poder do Estado com quadros qualificados e
remuneração competitiva. Denunciou logo, como de estilo, a voz do
imperialismo. E roubou a pauta. Correu a fazer reformas nos sistemas de
Justiça.
O documento “imperialista” do Banco Mundial foi publicado em 1996.
Depois de superado o voluntarismo de coturno do tenente-coronel Hugo
Chávez e a perspectiva ingênua da tentativa do golpe de Estado de 1992.
Em 1998, já por dentro da democracia, Chávez vence as eleições contra a
elite corrupta e insensível. Convoca Assembleia Nacional Constituinte.
Com a métrica da democracia populista, converte o escrutínio, de 52%
(chavista) contra 48% (oposição) dos votos, em esmagadoras 125 cadeiras
situacionistas, das 131 disponíveis. A Constituinte edita decreto
centralizando todos os poderes na pessoa do novo e sempre velho
representante do caudilhismo continental.
A Suprema Corte da Venezuela capitula – com os votos de 8 de seus 15
juízes – e se associa ao poder militar discricionário. Coube à primeira
mulher presidente de Suprema Corte, no continente, a corajosa Cecília
Sosa, ditar o epitáfio: “Sinceramente, a Corte Suprema de Justiça da
Venezuela se suicidou para evitar ser assassinada. O resultado é o
mesmo: está morta”.
No Brasil, o mandato presidencial de 2002 elegeu a primeira de suas
reformas: a do Judiciário. Os velhos vícios – do Brasil e, portanto, de
seu sistema de Justiça – foram institucionalizados. O clientelismo. O
pouco-caso com a independência funcional dos juízes. A preguiça
premiada. A burocratização. A falta de decoro. A aversão ao mérito. O
assembleísmo corporativo.
Para acomodar a nova elite judiciária, o contribuinte brasileiro foi
convocado a sustentar quatro conselhos de Justiça – nem o presidente
Hugo Chávez foi tão imodesto com o dinheiro público. O Poder Executivo,
por sua vez, assumiu a violência institucional de introduzir, no
Ministério da Justiça, uma certa Secretaria de Reforma do Poder
Judiciário, ato inusitado na História do Brasil. O experimento precário
das escolas de juízes foi ampliado e ganhou orçamento próprio –
verdadeira temeridade com as contas públicas –, para abrir a porta ao
dirigismo intelectual dos juízes.
A nova elite judiciária foi premiada com “penduricalhos” e dispensada do
trabalho pesado. Por outro lado, a magistratura silenciosa e
trabalhadora foi sufocada com relatórios e tarefas descabidas ou
inúteis.
A intimidação difusa e desmoralizante contra a magistratura silenciosa e
trabalhadora foi feita com cálculo. O juiz, como qualquer profissional,
não pode atrasar o serviço. Salvo se houver justificativa, é elementar.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou um tipo de expediente pelo
qual era possível acusar juízes de negligência, sem considerar, no
primeiro momento, as circunstâncias do fato. Da noite para o dia, foi
possível dizer, com estardalhaço, que centenas ou milhares de juízes
respondiam a investigações no CNJ, quando isso nunca foi verdade.
Não obstante este cenário na América Latina, em vários países, o Brasil
incluído, os magistrados começaram a reagir contra o populismo
autoritário incrementado com o método gramsciano. Por aqui, o arranjo
populista entre juízes e militares não prosperou.
As Forças Armadas cultivaram silenciosa resistência. Só depois do
impeachment o comandante do Exército, o hábil general Villas Bôas,
deixou saber que, sondado para a artificial decretação do Estado de
Defesa contra o povo nas ruas, recusou o cálice de veneno.
Agora, diante do fracasso bilionário dos quatro Conselhos de Justiça no
controle do teto constitucional, as boas intenções de alguns e as más
motivações de outros levaram o tema da remuneração dos juízes ao palco
iluminado.
Neste momento, sem que nada tenha sido decidido, o sindicalismo de toga
convoca greve inconstitucional contra a população. Não há autenticidade
em quem cerrou fileiras com a reforma do Judiciário feita contra o País e
a magistratura séria e trabalhadora.
Há algo a dizer-lhes e todos sabem bem o quê: a sociedade brasileira não
pode ser prejudicada pela patuscada sindical, só para dar rumo a quem
quer navegar nos ventos que estão a mudar.
No Estado Democrático de Direito, o sindicalismo de toga é parte – grave
– do problema, não de sua solução. Vamos aguardar a resposta
institucional do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional.
*DESEMBARGADOR FEDERAL DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3.ª REGIÃO (SP E
MS), DO QUAL FOI PRESIDENTE E CORREGEDOR, É JUIZ DO TRIBUNAL ELEITORAL
DE SÃO PAULO
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