Demétrio Magnoli:O Globo
Visitei Cuba em 1994, no auge do Período Especial, o termo orwelliano
escolhido pelo regime castrista para batizar a crise trágica derivada da
implosão da URSS. Casualmente, encontrei-me em Havana com uma ex-aluna,
que estava furiosa com um motorista de táxi atrevido o suficiente para
queixar-se do governo. A jovem brasileira, encantada com o mito da
Revolução Cubana, pensava em denunciar à gerência do hotel (isto é, na
prática, ao governo) o taxista que “manchava” a “imagem de Cuba”.
Lembrei-me do episódio acompanhando a cobertura da morte de Fidel
Castro. Com honrosas exceções, a imprensa prestou lealdade ao ícone
revolucionário, virando as costas, em indisfarçável desprezo, aos
cubanos comuns.
Os jornais encheram-se de declarações de estadistas, inclusive de nações
democráticas, prestando homenagem a uma figura que, “embora
controvertida”, teria desafiado o imperialismo, promovido a soberania de
Cuba e oferecido justiça social a seu povo. Nas capas e nos textos
internos, sobraram palavras épicas, especialmente “História” e
“Revolução”, que costumam ganhar o adorno da inicial maiúscula. Na TV,
de correspondentes brasileiros, ouvi panegíricos a Fidel que seus
próprios aduladores cubanos já têm vergonha de entoar. Tanto quanto os
estadistas, os jornalistas beberam avidamente no copo da utopia,
enterrando a realidade factual sob pilhas espessas de sentenças
ideológicas.
Fidel entrou no barco de Caronte, na derradeira jornada rumo ao
submundo, exatos 60 anos depois de embarcar no iate Granma, na madrugada
de 26 de novembro de 1956, para a viagem que conduziu seu grupo de
revolucionários do México à Sierra Maestra. Durante mais de meio século,
os nomes “Cuba” e “Fidel” foram pronunciados juntos, como se a nação
fundada por José Martí não pudesse existir sem seu supremo “Comandante”.
Mas, confundindo os repórteres, o peso incalculável dessa história não
produziu cenas dramáticas, emocionais, nas ruas de Havana.
Queria-se luto fechado, dor lancinante, declarações de amor incontido.
No lugar disso, os estrangeiros testemunharam um país anestesiado: ruas
mais ou menos vazias, uma normalidade sem buliço ou bebidas alcoólicas, a
resistência a conceder entrevistas, parcas declarações estandardizadas.
Os repórteres fingiram não ver o medo — e se recusaram a espiar dentro
dos lares. Na segurança dos espaços privados, longe dos ouvidos de
vizinhos nem sempre confiáveis, pronunciaram-se frases inconvenientes,
abriram-se garrafas de rum, alguns até mesmo brindaram. Os jornalistas
deveriam saber que Cuba, afinal, não é o equivalente de Fidel.
As lições sobre o medo estão à mão, em incontáveis relatos. Um exemplo é
suficiente. O dissidente soviético Natan Sharansky tinha 5 anos quando
morreu Stalin. Seu pai explicou-lhe, então, “que Stalin era uma pessoa
horrível, que matou muitas pessoas”, mas pediu-lhe a maior discrição:
“Faça o que todo mundo fizer”. Natan obedeceu. “Fui para a escola e
chorei junto com todas as crianças e cantei com todas elas as músicas
que diziam quão grande foi Stalin”. A dissociação entre o gesto público e
o privado, entre o que se diz e o que se pensa, é uma marca
inconfundível da vida cotidiana nos regimes totalitários. Sharansky:
“Isso é como funciona a mente de um cidadão leal, você faz tudo o que te
mandarem fazer. E, ao mesmo tempo, você sabe que tudo é mentira.”
Nos dias seguintes à morte de Fidel, o regime castrista prendeu, uma vez
mais, o grafiteiro El Sexto, que desenhara numa parede a frase “Já se
foi”, e proibiu um encontro do Centro de Estudos Convivência, um grupo
apartidário, cuja pauta era discutir perspectivas sobre a educação e a
cultura em Cuba. As duas notícias, tão reveladoras, quase não apareceram
na imprensa internacional, devotada a entrevistar, interminavelmente, o
“cidadão leal” que faz tudo o que os outros fazem. Os jornalistas
prestam homenagem à História, traindo seu compromisso profissional de
contar histórias.
O britânico “The Guardian”, um jornal de referência, publicou uma
reportagem convencional, pontilhada de declarações de praxe de cubanos
comuns, geralmente elogiosas ao “Comandante”. Na nota de rodapé,
esclarece-se burocraticamente que os nomes dos entrevistados foram
ficcionalizados. O “cidadão leal” teme ver seu nome reproduzido em
páginas impressas, quando fala de Fidel, mesmo se o elogia — e isso não
faz soar um alerta entre os repórteres, redatores ou editores! No caso
singular de Cuba, a imprensa normalizou as engrenagens do totalitarismo,
tratando-as como um relevo habitual da paisagem.
“A História me absolverá”, vaticinou Fidel em 1953, da cadeira de réu no
julgamento em que foi condenado pelo ataque ao quartel Moncada. O jovem
Fidel invocava a história para enfatizar a carência de legitimidade dos
juízes que serviam à ditadura de Fulgêncio Batista.
Mas a curiosa ideia da História como um tribunal de última instância, o
equivalente comunista do Juízo Final dos cristãos, cumpre a função de
uma assepsia moral. Diante da imponente Senhora Juíza, qual é o valor de
nossos princípios políticos ou de nossa bússola ética? Na sua maioria,
os analistas da imprensa inclinaram-se, respeitosamente, à exigência
castrista do julgamento pela História, um privilégio que, com razão,
jamais concederam a tantos outros ditadores.
A Cuba castrista justificou a ditadura em nome da proteção de um sistema
econômico socialista. Hoje, o próprio Raúl Castro admite a falência
desse sistema e promove reformas de mercado — mas conserva, a todo
custo, o poder ditatorial do Partido Comunista. O copo da utopia secou
antes da morte de Fidel, quando o regime decidiu substituir o socialismo
selvagem por um capitalismo simetricamente selvagem, que não abrange
liberdades políticas, autonomia sindical ou direitos trabalhistas.
Teimosos, porém, os jornalistas continuam reunidos em torno de um copo
vazio.
extraídaderota2014blogspot
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